quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O diário da verdadeira ressaca

6 de outubro
Eu acordo em uma ressaca meio nebulosa e demoro pra lembrar que fim de semana é esse. Então lembro de todas as pessoas que em algum momento me disseram que ele não tinha chance. Penso no menino que a um mês atrás me falou que ele não ia nem pro segundo turno. Eu não botei fé no menino, ainda que quisesse muito. Eu espero que você teja certo, disse. No fundo eu estava invejando a ingenuidade que trazia disfarçada de pragmatismo.

Eu sabia que ele tinha chances. Já sentia a forca do discurso dele desde muito antes, talvez porque soubesse como discursos com verdades absolutas são mobilizantes. Algo se aprende falando sobre Holocausto por dois anos todas as semanas. Mas eu ainda não quero acreditar em mim mesma – prefiro pensar que vai dar tudo certo, que não vamos ter um governo autoritário nesse país outra vez.

7 de outubro
Acho difícil acreditar que a oito anos atrás eu estava anulando meu voto. Porque hoje eu voltei a fumar por causa da eleição. Eu pedalo até a cidade vizinha, pra encontrar uns colegas e ensaiar uma apresentação que faremos durante a semana. Eles são ótimos e entendem quando digo que estou um pouco aérea. Aceitam quando fico no celular durante todo o ensaio – eles já sabem que estou apavorada com as eleições no Brasil. O que talvez não entendam é a angustia que sinto em estar distante. Eu não estou apenas ansiosa para descobrir o resultado de algo que está além do meu controle. Sinto um tanto de culpa também: eu devia estar votando, eu devia estar lutando. Eu não estou onde deveria estar.

8 de outubro
Eu acordo com uma ressaca diferente, que nenhum álcool antes me deu. A única sensação similar foi a quatro anos atrás, dois dias depois que presidenta Dilma foi reeleita.

Eu estava fazendo campanha – não queria que Aécio fosse eleito, achava que perderíamos direitos conquistados (porque mal sabia o que vinha pela frente). No dia da vitória eleitoral eu sai na rua pra comemorar e fiquei incomodada: meus amigos gritavam Chupa Tucanada para os moradores de prédios no centro que nos vaiavam. Perto do carro de som, as pessoas cantavam musiquinhas com Aecio Cheirador. Eu só pensava que tinha algo de errado com essa forma de fazer política, mas estava feliz. Tínhamos ganhado em uma vitória apertada. No dia seguinte disse para minha professora Ganhamos. Ela disse que não, que era mais complicado que isso – tem gente que simplesmente sabe. Eu sai da aula e fui pra acupuntura, onde passei 30 minutos ouvindo meu médico e suas pacientes discutindo o absurdo e a ignorância dessa gente que ainda vota no PT. Minha dor de cabeça encravava no meio da testa enquanto eu me encolhia na cadeira e queria muito fugir. No dia seguinte acordei com uma ressaca parecida com a de hoje. Talvez aquela ressaca de quatro anos atrás fosse um sinal dos tempos que estavam chegando.

9 de outubro
Sigo triste, mas menos angustiada – parece que não vai ter jeito mesmo. Deve ser também porque me sinto desacorçoada de ter que lidar com algo assim tão grande à distância. Eu sinto dor por estar distante com frequência, mas acho que isso consegue ser pior do que ver minha sobrinha aprender a andar por fotografias. Eu não sei o que estou fazendo aqui, não numa hora como essa.

14 de outubro
Depois de uma semana de desalento e cigarro, eu amorteço. Sei que não vou conseguir fazer minha parte de onde estou – nem sei qual seria minha parte afinal ou se a fazia quando estava em casa. Sigo acompanhando as notícias, cada uma delas me dói, mas nenhuma me derruba.

15 de outubro
Meu professor fala de um autor que compara a ascensão de Hitler com a ascensão de Trump, eu penso que o caso do Brasil é ainda mais terrivelmente similar. A inquietação acorda em mim. Tenho vontade de traduzir aquele texto, fazer todo mundo que conheço ler. Se vocês querem fazer isso, pelo menos saibam  o que estão fazendo. Mas ao mesmo tempo, eu sei que nada do que eu escreva vai fazer diferença. A última tentativa só serviu pra reforçar as convicções de alguns amigos e receber comentários irônicos de um ex-colega. Eu estava determinada a estabelecer dialogo e tentei começar uma conversa, perguntar sobre os filhos dele, saber se ele queria conversar sobre política. Ele nunca respondeu. Um conhecido começou uma conversa interessante comigo, uma conversa política de verdade, que serviu pra gente entender que podemos concordar mesmo discordando. Mas nesse momento, sinto que isso não basta.

25 de outubro
Eu vejo um tanto de pessoas fazendo campanhas virtuais contra o que vem. Alguns amigos que nunca foram tanto de falar em política, algumas alunas que tive e que nunca soube que se importassem com essas coisas. Eu acho bonito de ver e tento dar minha contribuiçãozinha, mais por desencargo de consciência que outra coisa. Eu sinto que nada do que eu faca nesse momento vai mudar o voto de ninguém.

26 de outubro
A onda de otimismo no meu Instagram me dá um leve ar fresco. Eu volto a pensar na eleição constantemente, mas dessa vez com uma nota de otimismo da vontade. Mas quando meus amigos aqui perguntam o que acho que vai acontecer, o pessimismo da razão fala mais alto. Ainda acho que não vai ter jeito, mesmo tendo feito nessa vida a escolha política de ser uma otimista inveterada.  

27 de outubro
A nesga de otimismo se junta com um sopro de ar fresco que recebo por aqui. Por um dia minha vida aqui é boa o suficiente pra me fazer pensar no Brasil um quase nada. E quando penso, penso com alegria e saudade da boa. Aquela calma que vem antes da tempestade.  

28 de outubro
Eu acordo ansiosa, mas parece que positiva. Não sei muito bem dizer, acho que tô de ressaca. Ressaca alcoólica, não política dessa vez. Decido ir fazer a lavanderia do mês – por algum motivo, olhar minhas roupas girando no meio de toda aquela gente falando espanhol no meu laundromat me relaxa. Troco mensagens com meus amigos no Brasil. Estou otimista, mas não iludido, ele diz. Estou preocupada, ela diz. São tempos sombrios, vejo alguém dizer. Mas quase todos os meus amigos estão postando mensagens otimistas. Eu sinto que ninguém acredita mas todos querem muito acreditar. Otimismo da vontade, é o que resta.

Eventualmente lavar a roupa e fazer faxina terminam tirando minha cabeça das eleições. Deixo a apuração aberta em um canto do meu computador, mas só lembro de olhar quando meu roomate me diz que o Pará votou no PT. É claro que o Pará votou no PT, mas e o resto. Abro a tela da apuração e vejo a tarja ELEITO. O resultado me surpreende positivamente: eu já sabia que o pior ia acontecer, mas em cima da hora quase metade do Brasil entendeu que era o pior.  

Pena que quase metade não é o suficiente. Não estou surpresa, mas frustrada. Não tenho raiva, mas tampouco tenho vontade de dialogar com aquele conhecido educado que votou pra isso acontecer. Não tenho energia para lidar com isso. Quero me fechar na concha, como quis aquele dia depois da acupuntura quando a dor de cabeça milenar da richa política me encravou na testa.

Mas antes de desconectar todos os meus gadgets, abro o Instagram. Ele está repleto de mensagens de esperança, apoio, resistência. Absolutamente inundado de Ninguém Solta a Mão de Ninguém. Sinto vontade de chorar, mas por amor e não por dor. Somos todos amados, armados ou não. Existiremos.

29 de outubro
Eu pedalo até a universidade e penso na história de Instagram que acabei de ver. Um menino que foi votar cantando Vai Dar PT na sua bicicleta e depois vestiu uma camisa do Brasil para entrevistar eleitores do outo lado. Minha primeira reação foi achar aquilo subversivo e gracioso. Mas começo a pedalar e me dá um medo. Fico pensando se ele está bem, se alguém reconheceu ele no seu disfarce, se ele foi agredido. Muito medo, e muita dor por sentir esse medo.

Desço da bicicleta e escrevo para o menino que se infiltrou do outro lado. Não faça isso sozinho, se cuide. Percebo que a parte de mim que mais vai sofrer nos próximos quatro anos é meu instinto maternal – aquele desejo de cuidar de todos e saber que estão bem o tempo todo. Minha vontade é voltar para o Brasil agora. Também porque quero protestar, resistir. Mas principalmente porque quero acompanhar meus amigos até em casa depois do protesto, ter certeza de que chegaram bem. Saber que as migues todas entraram no Uber em segurança depois da balada e saber que chegaram em casa em paz.

Não vou poder fazer isso. Não vou ser capaz de proteger quem amo, não vou estar lá pra lutar pela terra e pelo povo que amo. Me resta estar presente na ausência, se é que isso faz sentido. Estremecer a cada notícia, falsa ou verdadeira, sobre linchamentos, agressões, ataques a tudo aquilo que é desviante.

Chego na universidade com o coração na garganta. Os amigos se importam e perguntam, os colegas querem saber como estou. A única ausência é que as pessoas aqui não sabem abraçar. Numa hora dessa a doçura sem o abraço não tem muita serventia.

Quero prestar atenção na aula. Sei que o que meu professor de teoria política está falando ajuda a entender meu país agora, mas me perco. O problema é também que quando presto atenção e processo as informações, me dá vontade de chorar. Tudo fala sobre o Brasil, sobre o dia de ontem. Sobre esse dia de amanhã que dá tanto medo.


 

domingo, 14 de outubro de 2018

àqueles que cresceram comigo

estar longe do Brasil é uma experiencia carregada de dor e amor pra mim. tem sido assim desde que sai a primeira vez, em setembro do ano passado - ainda que em alguns momentos eu esteja mais consciente disso. mas o peito carregado de saudades constantes é muito diferente do que senti na última semana. nada doi mais do que ver seres humanos com sua existência em risco ao mesmo tempo que vejo pessoas com quem cresci escolhendo colocá-los em risco. em nome da economia ou de se livrar do inimigo politico. 

já faz um tempo, imagino, que eu me tornei o inimigo para estas pessoas. nunca quis que isso acontecesse, mas talvez não exercitei o diálogo suficientemente para evitá-lo. por outro lado, precisava seguir existindo, sendo fiel ao que sou. e meu corpo político pode gerar as mais diversas reações, entre elas intimidar o outro, impedí-lo de dialogar comigo. sinto um misto de culpa, dor, desesperança, medo e cansaço. mais que tudo, sitno desejo fazer algo, vontade de estar no Brasil.

queria poder olhar nos olhos daqueles que visitaram campos de concentração comigo e agora aplaudem ou ignoram discursos facistas. aqueles que foram educados, melhor do que ninguém, sobre os riscos de deixar a violência acontecer, de autorizar a opressão da alteridade. os mesmos que nao exitaram em colocar o rotulo de petralha em mim e meus amigos e nos mandar de volta para Cuba - simplesmente porque defendemos redistribuicao de renda e eles defendem crescer a bolo antes de dividir os pedaços. 

eu acredito na divisão justa antes, durante, e depois do crescimento e gasto meus dias estudando pra te provar que esse é o caminho. mas posso entender, aceitar, dialogar com sua crença num crescimento que precisa vir antes. só não posso, nem nunca vou aceitar que voce coloque isso acima da dignidade humana, dos direitos das mulheres, das comunidades, da populacao pobre. que voce passe por cima de suasticas tatuadas na barriga, garrafadas no pescoco, linchamentos, apologia ao estupro, racismo.  

quando eu trabalhava no museu do holocausto, enchia a boca para falar sobre Heinrich Heine - o sujeito que viu livros sendo queimados na Alemanha e avisou que o pais terminaria queimando pessoas. eu fazia isso semanalmente com todo o orgulho do meu trabalho e da minha comunidade que o permitia acontecer. mas meu orgulho virou vergonha e questionamento profundo da comunidade que me fez quem eu sou. porque agora vejo que pessoas com quem cresci nao entenderam nada. em nome da economia e do fim dos vermelhos, elas sao capazes de deixar queimar os livros.  

e do fundo do meu coracao, nao desejo que ninguem precise se arrepender no futuro. porque quero sempre o melhor para o Brasil e os seres humanos que nele habitam. desejo amor, tranquilidade e um prato cheio de comida para todas as pessoas, independente de suas opcoes eleitorais. para aqueles que cresceram comigo, nao temo pela falta de pratos de comida. talvez pela tranquilidade, de ver a violencia autorizada pelo seu voto. e quanto ao amor, faz tempo que nao sei por onde anda. se encontrarem, me avisem. 

quarta-feira, 2 de maio de 2018

por que eu senti tesao vendo "eu nao sou um homem facil"

sim, gente, vamos conversar sobre tesao. escrevo isso e ja fico ouvindo vozes dizendo: mas que horror, que vulgaridade. ficar falando de putaria assim publicamente. mas nao eh bem isso. quando eu falo de tesao, estou falando de ver -no meu caso- um homem e desejar ele com muita intensidade. e isso passa pelo corpo, claro.

-convenhamos, tudo passa. mesmo que tentemos nos convencer que somos cerebros racionais que independem do receptaculo que os carrega-

mas falo de uma experiencia que transcende o corpo. como na vez que mais senti tesao por um homem. ele me falava da sua experiencia lendo mulheres que correm com lobos e entendendo melhor seu proprio lado feminino. e eu pensando: eu poderia agarrar essa pessoa agora. ta bom que eh um experiencia bem minha - eu desejava ele porque ele dialogava com alguns dos meus desejos mais profundos. podiam ser outros, a depender do menu de desejos profundos de cada um. em todo caso, passei a entender tesao como algo meio antropofagico. um desejo de engolir a pessoa para absorver o que tem de mais bonito.

pois bem, entao fui assistir esse filme. "eu nao sao um homem facil" eh uma especie de utopia femista. nao feminista, femista. o personagem principal eh um homem desses, que voce manda enquadrar para pintar um retrato da masculinidade. um dia ele bate a cabeca e desperta em um mundo onde as mulheres exercem o exato papel que os homens tem hoje. assediam, diminuem, chamam os homens de loucos - especialmente aqueles que se atrevem a fazer afirmacoes de poder.

ai voce ja pensa: vix, virou radical. ta toda femista. feminazi. acha bonito oprimir oz home tudo. mas peor que nao, migues. a utopia femista nao mexeu com meu coracao, apesar de ser muito engracadinha. nao da pra nao rir da inversao. dificil nao rir quando aquilo que te faz chorar aparece ao reves em um mundo imaginario. mas isso nao me da tesao, nao dialoga com meus desejos. nao sinto tesao em opressao.

porem, entretanto, contudo, todavia... existe um romancezinho entre o protagonista e uma mulher que representa  no mundo femista o que ele representava no nosso. a comedora. e nesse encontro de comedores de dimensoes paralelas, rola um processo do tipo cebola: um descascamento de camadas de ego, poder, opressao. e, buenas, sem mais spoilers, isso gera uma qualidade de encontro bonita.  e pronto, era so isso. pra quem clicou no link porque leu a palavra tesao, desculpa. nao queria falar de putaria, apenas de desejos.

sábado, 7 de outubro de 2017

pra alimentar o imaginário dazmiga que curte seriado

entendedores entenderão, mas tem horas que eu me sinto a Hanna em Iowa. pros não entendedores de seriados americanos de menininha, vamos lá. nossa amiga Hanna (personagem-alter-ego da Lena Dunham em girls) certo dia da quarta temporada decide voltar a estudar. ela se enfia  em Iowa, que é um lugar no meio dos isteites que tem uma porrada de campo de milho. ela chega toda linda e faceira, mas vai se dando conta que é tá totalmente fora do seu elemento. 

minha cena favorita, como não podia deixar de ser, é quando ela vai numa festa em uma frat house, nosso equivalente de uma festa de alunicos de graduação. talvez algo como uma festa de arquitetura no DCE, só que menos criativa. ela tá tão deslocada e precisada de um descarrego que termina dançando sozinha bem loca no meio da sala. um descarrego digno, nada que eu não apoiaria ou faria. mas, pros que tão se perguntando, não cheguei nesse ponto ainda. mas como ela, não tenho muita vida social, as vezes me sinto alienígena no meio dos coleguinhas e frequentemente dou com a cara na parede. essa última frase pode ser lida no sentido figurativo ou real, vide o galo que fiz esses dias. 

mas eu também tenho meu momentos Rory (a menina fofinha do Gilmore Girls). e não é só porque aqui também tem uma estação de cereais no refeitório (a propósito, bem impressionante, um corredor com 23 variedades de sucrilhos). mas eu constantemente me pego pensando que estou no lugar mais maravilhoso do mundo. mesmo. me impressiono pelo menos uma vez por semana com alguma discussão que acompanho. me pego pensando gente-comé-que-não-vim-presse-lugar-antes ou olha-esse-povo-diverso-discutindo-diversidade-que-lindo ou ainda que-show-as-pessoas-fazem-perguntas-pra-saber-a-resposta-e-não-pra-mostrar-erudição. eu fico deslumbrada que nem a Rory em Yale, quando se dá conta que foi parar num mundo mágico do aprendizado. 

e assim, sabe... com certa frequência o aprendizado também vem acompanhado de comida. é, comida-de-graça - essa semana eu tive sete refeições gratuitas em palestras/eventos. ontem inclusive eu comi aperitivos de camarão no bafo com bacon tomando vinho tinto no meio doz dotor tudo. no mesmo evento em que eu ouvi sobre atendimento de saúde para crianças trans e sobre como o uso das estatísticas falseia a visão social sobre a população negra. tipo, Rutgers sua linda, para de ser perfeita.  

fora isso, teve o dia que eu fui atendida por uma canadense maravilhosa que me ajudou a analisar opções de bolsas para aplicar e tentar ficar nessa universidade linda. ou quando um rapaz latino me resolveu 5 problemas de software diferentes só porque eu fui até o setor dele com meu computadorzinho embaixo do braço e pedi ajuda. e também teve o dia que o gerente da academia da universidade me mostrou as instalações e me explicou sobre as aulas de zumba, pilates, yoga e a porra toda que eu posso fazer. ou ainda o auge de todos os momentos-Rory: o dia que eu fui até a biblioteca e descobri dois corredores inteiros de literatura em português. e o funcionário simpático me disse que eu podia emprestar quantos livros quisesse e ficar com eles até o fim do semestre. 

pois sim, meu coração explode toda vez que eu descubro o que posso fazer de graça aqui dentro. quer dizer, de graça não. pagando uma quantia, absurda para qualquer brasileiro, e se tornando aluna desse instituição. sim, nada é de graça nesse país - mas isso é conversa para outro dia. 

(eu com fone de ouvido respondendo: você troca o R.U. por 1,90 por um refeitório com todas as comidas possíveis por 11 doleta? você troca a biblioteca da reitoria de graça...)

por ora, o que posso dizer é: tive meus momentos alienígenas que-que-eu-to-fazendo-aqui-socorro. mas, por enquanto, os momentos garotinha deslumbrada na (univer)cidade grande tão ganhando de longe. 









quinta-feira, 5 de outubro de 2017

eu e meu ingreis

gente, já falei que ser gringa cansa. mas vou falar pra vocês: também dá uma vergonha às vezes. aquela sensaçãozinha que eu tive, na primeira vez que tentei comprar um sanduíche e não entendi nada nem me fiz entendida? mal sabia: é a coisa mais corriqueira na minha vida. 

logo eu, que falo mais que o homem da cobra e tenho opinião pra tudo, de repente deixei de ser entendida. quer dizer, não é uma torre de babel desatada, as pessoas costumam me entender. e é justamente esse o problema. explico...

eu tenho um sotaquinho brasileiro bem discreto. veja, não é uma escolha que eu fiz, de disfarçar meu brasileirismo. minha roomate turca fala um inglês impecável com sotaque turco, e é uma coisa linda de se ouvir. queria eu ter um inglês correto com um sotaque só meu. mas meu cérebro aprende línguas mimetizando. eu tenho o instinto de imitar o sotaque alheio. nesse caso, o sotaque de todos os personagens de filmes e seriados americanos que eu vi na vida, mais o de uma roomate californiana.

pois bem, com essa amálgama confusa, as pessoas me ouvem e sabem que eu não nasci aqui. mas não percebem ou não se lembram o tempo todo que eu acabei de chegar. e aí quando eu troco os pés pelas mãos e falo algo estúpido, elas simplesmente sorriem amarelo. 

esses dias, por exemplo, estou conversando com um colega que vem de patins para a faculdade. eu quero dizer que deve ser um exercício bom para o equilíbrio e fortalecimento do core, colocando minha mão no umbigo e achando que fui entendida. todos os coleguinhas na roda sorriem amarelo. depois me dou conta que algum embaralho na minha fala deu a entender que devia ser bom pra perder a barriga que meu coleguinha tinha. 

e o mais chato desse tipo de gafe é que quando você percebe, já não dá pra corrigir porque o assunto passou. ou a gafe é tão absurda que as pessoas pergunta QUE e você explica, mas aí você já virou um avestruz e enfiou a cabeça na terra. tipo quando eu dei a entender que pessoas brancas tem a responsabilidade de ter privilégios (?????). 

pois sim, é o caos. e se isso é complicado, imagina aquelas situações que você quer parecer descolado. prefiro nem pensar. 

e enquanto não penso, tento me concentrar em ouvir mais e falar menos. quem me conhece sabe que é um ótimo exercício pra mim em qualquer língua. mas em inglês não tem sido uma opção: vou ter que ficar quieta pra, quando falar, fazer mais sentido. 

ao mesmo tempo, fico falando comigo mesma dentro da minha cabeça em inglês. quer dizer, venho fazendo isso como uma espécie de exercício desde o primeiro dia. mas aos poucos, alguns pensamentos estão fluindo naturalmente nessa língua enrolada. várias palavras já fazem mais sentido em inglês, como sempre me acontece quando eu mergulho em outra língua. e, como já estou cheia de preocupações, meus delírios/pensamentos semi-despertos na insônia já são em inglês. 

mas, o melhor de tudo aconteceu essa noite. quer dizer, eu acho que aconteceu. só sei que acordei com a lembrança de uma policial, interpretada pela mesma a mulher que passa meu cartão no refeitório na hora do almoço. a que me corta quando eu explico como funciona meu cartão, dizendo que se lembra de mim, sem nunca deixar claro se isso é uma expressão de simpatia ou de desconfiança. no meu sonho, ela me revistava e depois me entregava lencinhos umedecidos para clean your tush.

e eu não quero nem saber o que meu amigo Freud tem pra dizer sobre isso. apenas fico satisfeita em saber que, pelo jeito, estou sonhando em inglês. 


sábado, 30 de setembro de 2017

da doença por falta de casa

como boa falante de português orgulhosa, sou muito apegada à palavra saudade. mesmo depois que descobri que em hebraico também existe uma palavra para isso, inclusive com plural e singular, continuei vendendo o discurso da palavra que é só nossa. mas, mesmo os soldados mais ferrenhos da língua portuguesa devem se render às vezes, diante da boniteza de outra língua. 

a palavra que vem ganhando meu coração é homesick

esses dias uma pessoa me apresentou a um brasileiro dizendo: queria que você conhecesse ela, porque no ela esta homesick. eu disse que nããão, eu não estava homesick e curiosamente minha voz atingiu um tom um tanto agudo. na minha cabeça a definição era muito pesada praquilo que eu sentia em relação ao Brasil. 

primeiro, porque existe uma questão cognitiva. a gente entende algo novo por comparações com aquilo que já conhece. eu vivo significando minhas impressões, visões e ideias com frases que começam com "no Brasil...". e parece que você de fato entende e aceita algo quando consegue estabelecer raciocínios baseados apenas na realidade que está vivendo. mas isso não é saudade.

depois, ficava o peso da palavra doente embutida quando me diziam homesick. não me pergunte por onde, mas me vinha a imagem de soldados em um trincheira lendo as cartas de alguém amado. passado um tempo, porém, me dei conta que a palavra não tinha essa carga. mais que isso, percebi que descrevia com precisão um sentimento central na substância de ser estrangeira. 

é que sick, além de doente, pode ser enjoado, mareado. aquela sensaçãozinha de fundo que não é das dez mais agradáveis mas não te impede de viver. as vezes te empurra mais pra viver, vai saber. morre aquele misto-de-tédio-e-preguiça que as vezes estar em casa nos dá. nascem deslumbramentos, surpresas, curiosidades, desafios. nasce um desejo de ficar nesse lugar que te transborda de novo.

mas fica faltando um calorzinho no coração. um que não está lá, vai saber, quando você se senta no ferry boat e olha pro mar. você está voltando de um dia de viagem lindo. você botou os pés no mar e até sentiu que aquele seu ponto-pacífico-que-fica-no-atlântico veio junto com você na mala. afinal, é o mesmo mar. mas aí você senta no ferry boat e pensa: me falta aquele colinho. 

um colo que não é de uma pessoa só. mas de uma série de amores que ficaram pra trás. aqueles amores despretensiosos que brotam numa amizade de longa data e olhar profundo. coisas que você não sabe como serão nesse lugar novo, mas que sabe que não serão como antes.

e não é tristeza, ainda que possa virar. é mais um gostinho bom de amore e saudade. é uma condição que, você entende, vai te acompanhar. sempre. vai te lembrar que ter asas é fundamental, mas você nunca vai deixar de ter raízes. 





sábado, 23 de setembro de 2017

o parque das terras altas

pois eis que vim parar em um lugar que se chama Highland Park.

passei quase duas semana jurando que era um bairro de New Brunswick, a cidade onde estudo. mas depois de várias gafes entendi que não: esse lugarejo com 50 km de asfalto tem até prefeito. e mais, cidadão orgulhosos e uma associação de bairro ativa. além dos esquilos e enviadinhos, a pseudo-cidade também tem uma vasta coleção de velhinhas, crianças e casais sorridentes.

a minha parte favorita de morar aqui é que cruzo o rio todos os dias para ir pra aula. o Raritan, meu novo velho amigo, que me cumprimenta todas as manhas. e eu cumprimento ele de volta, sim. aliás, estou com a mania insuportável de dizer oi para todos os esquilos que vejo. só parei de cumprimentar as famílias de veadinhos porque, aparentemente, elas se retiraram de férias em direção ao sul. 

tá, eu tô ficando meio louca, talvez. ou tô assumindo mais minha loucura porque não tem muita gente pra ver. mas também tem contato humano aqui, juro! por exemplo, na minha primeira semana comprei uma abóbora direto da produtora - aliás, está começando época de abóbora por aqui e aparentemente, existem 887 variedades do bicho. na semana seguinte, conheci o Pino's, um barzinho que aceita cachorros e onde as pessoas levam seu próprio rango. 

mas a melhor parte desse tal parque das terras altas é, sem dúvida, sair a noite. a cidade tem iluminação pública só nas ruas principais. nas ruas menores, algumas casas iluminam o caminho. no parque existe uma luz que fica perto das docas e acende quando você passa. e eu saio as onze da noite pra ir ao mercado. vou correr no parque em breu absoluto. e cada vez que faço isso, meu coraçãozinho de mulher brasileira fica tenso e depois suspira aliviado. é uma leveza inenarrável.

e aí, já que estou nessa de vender meu peixe, preciso dizer: a impressão é que Highland Park tem tudo isso de cidade pequena, mas uma cabecinha de cidade grande. aqui tem muitos filhos da universidade, que - outro dia conto - parece bem progressista. você anda pelas ruas e vê placas dizendo em três línguas "não importa de onde você vem, estamos feliz em ser seus vizinhos". vi uma bandeira confederada, é verdade. mas também vi uma bandeira de arco iris numa casa cheia de artes e dizeres lindo. os dizeres bonitos até o momento estão ganhando de longe até das bandeiras americanas (!).

enfim, você já deve ter percebido que estou apaixonada. mas é que gosto do que vejo, do que cheiro e do que ouço morando nesse lugar. ir dormir com os grilos e acordar com os passarinhos nunca foi meu grande sonho, sou mocinha da cidade. mas é bem agradável, vou te falar.

pois bem, agora só falta você me visitar.