domingo, 27 de outubro de 2013

"O silêncio é a profunda noite secreta do mundo"

  As vezes preciso de barulho. Me encantam as confusões agradáveis com suas intensas trocas. Me agrada colocar todo o meu ruído interno pra dialogar com outros tantos ruídos. Mas as vezes tenho ganas de viver em silêncio. O silêncio pode ser tão bonito. É aquela coisa toda do copo meio-cheio-meio-vazio, sabe? 
  Não? Tá, talvez eu também não saiba. Mas sei que um bom silêncio pode me matar a fome de tudo, a fome de mundo, de quando em vez. Gosta daqueles silêncios leves e suaves. Aqueles que te olham e te dizem: está tudo bem, não há mais nada a dizer ou fazer. 
  Mas existem silêncios e silêncios. Não gosto de silêncios mal resolvidos (quem gosta?). Especialmente, me doem aqueles silêncios angustiados, em que alguma das partes tem um buraco a ser preenchido e a outra não pode fazê-lo. Ou não quer. Me incomoda não saber preencher buracos que anseiam por recheio. Ainda que acredite na política da laranja inteira (cada um com seu buraco/cada um com seu recheio), não tenho a dignidade de olhar pra esses silêncios e dizer "é isso aí". 
  
  Me dói. Sinto como uma câimbra no pequeno buraco que carrego no peito.  

  Talvez seja porque nasci e cresci no meio de um barulho tão intenso. Um ruído louco e compartilhado em que todos se machucavam e se acarinhavam com palavras diariamente, simplesmente por se amar tão intensamente. E não saber muito bem o que fazer com isso. 
  Posso dizer que cresci em meio ao que hoje chamaria de uma barulheira infernal. Mas que, estranhamente, foi o que me fez o que sou. Serena em meio ao caos, caótica me meio à mansidão. Um poço de contradições, como diria minha mãe. Foi essa barulheira que me deu, também, aquilo que mais precisava.  Que carrego com orgulho. Aquilo que todos os pais deveriam dar à seus filhos. Raízes e asas. 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Era uma menina.

Engole seu coração e se ama por dentro 
Caio Fernando Abreu

  Era uma vez uma linda menina. Linda de tudo. No jeito de andar, de dançar. No jeito de sentir. No jeito leve de usar as mãos para tocar os outros, tocar o mundo. Linda no jeitinho de se vestir. Linda quando balançava o cabelo dourado. Linda quando sorria. De todos os tipos de lindeza, só lhe faltava uma: aquela lindeza tranquila e macia de quem sabe que o é. 
  E assim caminhava pelo mundo. Linda que era, não deixava de cativar as atenções de uns mocinhos. Eles a olhavam, gostavam do que viam. Se aproximavam, ela gostava do que via também, então. E assim, já sabemos, começava. E depois terminava, pois como tudo nessa vida os amores tem começo, fim e às vezes meio. E quando acabavam a menina costumava chorar, como é por bem se fazer quando se tem um coração assim, bonito. E quando chorava se sentava diante do espelho e se perguntava o que havia dado errado. Se perguntava e se respondia: deve ser isso aqui, que me sobra. Ou aquilo outro, que me falta. Deve ser a lindeza que anda me faltando.
  Em pouco tempo já estava burlando o mandamento número um da boniteza do mundo: "não cobiçaras as lindezas do próximo". Mal sabia que isso era proibido não porque era pecado, coisa de gente invejosa. Não porque tamanho olho gordo podia deixar o próximo (ou a próxima) com a boca torta. Era proibido porque, cobiçando a lindeza dos outros, você estava amassando a sua e jogando-a bem no fundo, no cantinho de si mesma. 
  E com sua lindeza, enorme que era, amassada bem no fundo do seu ser, a menina continuou a caminhar pelo mundo. E os mocinhos já não olhavam tanto, o que a fazia amassar-se um pouco mais. E quanto mais a amassava, menos os mocinhos se aproximavam. E quanto menos se aproximavam, mais ela amarrotava seu serzinho. E foi ficando, assim, um serzinho, bem pequenininha. E com um buraco doído no meio do peito, que latejava a cada vez que seu coraçãozinho amarrotado batia. 
  Um dia, se enraiveceu. "Pra que me serve esse negócio, que não cessa de bater? Pra nada, só pra doer!". É, foi assim mesmo, parafraseando o falecido mestre sem nem saber, que ela decidiu. Decidiu que não queria mais. Não queria mais doer. Não queria mais sentir. Não queria mais aquele bendito e bonito coração. Sem pestanejar enfiou as mãos bem fundo no meio do peito. Usou as unhas e os dentes com força contra si mesma, até que conseguiu arrancar o malfadado coração. 
  E então, sentou-se no meio fio e ficou olhando o ser vermelho e palpitante - que palpitava, ainda, meio manco, mas já não doía mais. E ficou olhando a criatura bonita e encarnada de sangue. E aí, ninguém sabe bem o que aconteceu. Não se sabe se foi um acesso de canibalismo, uma fome de mundo repentina, um impulso antropofágico ou aquele desespero de socorro-já-não-estou-sentindo-nada que bateu na menininha. Só sei dizer que foi definitivo: ela abriu a maior boca que tinha e engoliu de uma mordida só o bem fadado coração. Engoliu e, nem bem terminara de saboreá-lo, viu que já não estava mais encolhida e amarrotada. Estava como recém saída da lavanderia. Estava linda e inteira, como não podia deixar de ser. Afinal, engolira seu belo coraçãozinho e agora... Ah, agora se amava por dentro, e com muito gosto. 

É nóis na Gazeta. Sobre professauros.

Ou pelo link, fica mais fácil.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

classificação morfossintática dos (des)amores.

  
  Existem amores fulminantes e amores tranquilos. Existem amores inteiros, existem amores divididos. Existem amores pretensamente eternos. Existem amores infinitos enquanto dura a chama. Existem amores antigos, em que a chama evolui para uma outra espécie, sobre a qual não posso discorrer por desconhecimento. 
  Existem amores do tipo oásis, que se compõem de um penoso caminho seguido de um milagroso gole que parece refrescar o corpo e a alma por inteiro. Mas as vezes, gostoso que é, esse gole não mata a sede, só a multiplica. 
  Existem, ainda, amores do tipo bonde. Nestes, já na aproximação você antevê o atropelamento e pensa "ai, essa vai doer". Mas estranhamente não há força que te arranque do meio daquele trilho. Ao contrário, você abre os braços e espera calmamente pelo impacto. E depois, quando você consegue se levantar dos trilhos, esmagado, em geral carrega alguns ossos quebrados, um aperto no coração, uma vontade louca e um poema. Esses eu costumo registrar no meu caderno da vida ao lado de uma anotação dizendo - com a licença do empréstimo ao falecido mestre - "na passagem do furação ...". Belíssimos furações com nome, sobrenome e o poder de deixar um gostinho agridoce na boca. 
  Também existem os amores do tipo balão-de-ar-quente. Nestes geralmente dois indivíduos se propõem a entrar no cesto e se encarar, olho no olho. E no meio disso, algo acontece: a maçarico acende e o ar quente ascende. E juntos os dois indivíduos voam, olhos nos olhos, apenas desviando o olhar vez por outra para notar que linda é a paisagem que se forma em volta. Esses balões em geral pousam devagar e macio. As vezes na saída do cesto ocorrem alguns arranhões. Mas passada a dor, fica a boniteza de olhar pro horizonte e lembrar do seu balão voando e do ser que te acompanhou nessa jornada. 
  Mas também existem amores do tipo balão-de-gás-hélio. Quanto a esses recomendo cuidado: inicialmente nos lembram muito uma viagem em balão de ar quente, mas logo percebemo aonde estamos e vemos que um balão de gás hélio não é capaz de aguentar o peso de duas pessoas. Assim, por mais que a vista seja bela, eles podem estourar quando atingem a atmosfera, levando os dois indivíduos ao chão com uns bons ferimentos. Ou, o pior. Quando você se dá conta, o outro que estava ali contigo já soltou da cordinha a poucos metros do chão e, além de cair, você cai sozinho. 
  Entre os perigosos existem também os amores do tipo pedestal, do tipo casadinho-de-goiabada (que é doce e grudento mas esfarela na primeira intempérie) ou mesmo do tipo cancerígeno. Mas desses tampouco me ocupo pois, felizmente, nunca os experimentei. 
  Mas, dentre todos os tipo de amor, devo dizer que os meus favoritos são os amores de tipo efêmero. Estes podem chegar fulminantes ou mais suaves. O que os caracteriza é uma doçura com gostinho de café, uma sensação de completude, um afeto manso e uma clara noção de começo, meio e fim. Geralmente terminam com um afetuoso "até mais ver" ou um gostoso "boa viagem, se cuide". Deixam um saudade amena, que é como lembrar do sabor de algo gostoso quando sentimos um cheiro. Mas aí percebemos que somente sentir o cheiro já nos encheu de plenitude. Estes, sempre se vão. Fica, apenas, a boniteza de ter sentido. 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Reclamo porque amo.

  Reclamo porque se não o fizesse não seria professora. Reclamo dos salários, reclamo das condições de trabalho. Reclamo das políticas públicas, do governo do estado, da prefeitura e mais ainda de outras prefeituras que vejo por aí. Reclamo da postura dos pais, que não colocam limites. Reclamo dos adolescente, benditos. Reclamo até das crianças, de quando em vez. Às vezes reclamo dos colegas - ainda que ultimamente tão pouco. Vivo reclamando por melhores condições e um reconhecimento verdadeiro para aqueles que cumprem o malfadado ofício. Porque ser professor é ingrato. É querer mudar o homem, e querer mudar o homem é querer mudar o mundo (pode rir da minha cara agora, não me importo). E querer tudo isso, no mundo/país em que vivemos, é estar destinado a sofrer. Porque ensinar é aprender e aprender é sofrer. Porque não conseguir ensinar é aprender e sofrer ainda mais. E não conseguir faz parte da vida de quem lida com gente. Com gente pequena, então, há que se carregar mentalmente um catálogo de "planos B". Há que se virar em três. Há que se ensinar algo a alguém e ensinar esse alguém a não se tornar um algo - nem fazer isso com o outro. E para isso tudo, só tendo muita energia. Só tendo muita vontade. Só tendo muito amor. 
  E me perdoem se parece "pieguismo pedagógico", mas falo de uma amor maduro. Um amor sem ingenuidades. Um amor carregado do mais forte respeito pela infância e pelo ser humano que ela carrega. Um amor que te faz, mesmo cansado e maltrapilho, soltar os sorrisos e risadas mais sinceros no seu local de trabalho. Um amor que te faz sentir uma felicidade autêntica quando você vê um aluno avançando a partir do andaime que você ajudou a construir. Um amor que te liga as "tuas" crianças, ainda que elas passem de ano e você fique. Um amor que te faz continuar. Mesmo que reclame. Aliás, um amor que te faz reclamar, justamente por saber porque aquilo tudo é tão especial. Justamente porque, mesmo sendo tão difícil, você não largaria o osso por nada. 

  Eu reclamo, porque se não o fizesse não seria professora. Mas amo, porque se não o fizesse não seria quem sou. 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Belo belo belo, tenho tudo quanto quero.

  Sempre creditei meu amor pela arte a minha delicada mãezinha. De fato, a moça do cabelo de macarrão sempre me levou aos museus e me apresentou as belezas de Monet, Degas, Renoir e outros nomes que não se falam como se lê. Talvez até, de maneira inconsciente, me ensinou aquele diletantismo delicado de quem vai ao museu: o olhar de perto, o olhar de longe, o coçar o queixo e com uma expressão facial demonstrar seu juízo sobre a obra. Sem dúvida a moça do cabelo de macarrão, com seus programas culturais, me alfabetizou nesse mundo. 
  Orgulhosa, as vezes me questionava: como, da fórmula [mesma barriga + mesmo capital cultural], saíram dois seres tão distintos como eu e o ogro do meu irmão? "Pfffff... Isso é arte? Eu também faço um desses, ó!", dizia, diante de obras contemporâneas. E eu com minha coçadinha no queixo mantinha o silêncio e balançava minha cabeça, desesperançada. 
  Enfim, aceitei as discrepâncias do destino. Aceitei ser irmã de um ogro. Segui visitando meus museus, e ele seguiu vendo seus jogos de futebol. Mas a verdade é que somente muito mais tarde eu fui perceber o que realmente era apreciar a beleza da arte. E quando percebi vi que, certamente, a alfabetização com a moça do cabelo de macarrão foi essencial. Só que me dei conta que, mais do que conhecer nomes e escolas, viver a arte era sentir. Suspender o olhar cotidiano. "Deixar que as coisas se aproximem de nós", como já disse o meste. E aí, pasmem, me lembrei do meu querido irmão-ogro. 
  Ogro que é, nunca se sentiu bem em museus ou em quaisquer lugares refinados. Mas tinha a estranha mania de me levar para dar a volta na quadra e ver a lua. Quem sabe andar até o fim da rua para ver onde terminava. Ou então, inventar histórias de animais voadores e mágico, simplesmente olhando nossa gatinha de estimação. 
  Os sinais sempre estiveram ali. Mas somente hoje fui ver - quando cheguei sem querer ao fim de nossa rua - que, na verdade, meu caro irmão-ogro tem lá sua delicadeza. E se a moça de cabelo de macarrão me familiarizou com os museus, ele foi quem me ensinou a fazer da vida uma imensa experiência estética. A cada esquina, a cada lua cheia, encontrar o belo. Por mais ogro que seja, sem nem perceber. 

domingo, 6 de outubro de 2013

O que há de bom.

  Bom é deixar as rodas em casa e sair para andar sobre os próprios pés. Bom é flutuar sozinho.  Bom é, contra o vento ou a favor, poder fechar os olhos. Bom é o encontro. Boa é a surpresa de descobrir o outro. Bom é conhecer a fundo, bom é conhecer de passagem. Bom é tocar. Bom é ser tocado. Bom é se jogar com tudo, num corpo a corpo com a materialidade do mundo. Boa é a materialidade do outro, sentida de leve ou de pesado. Bom é, do alto de nossa completude, encontrar no outro aquilo que não temos.

  Boa é a troca. Bom é poder olhar. Bom é sentir seus olhos como duas câmeras para quem o mundo está posando. Bom é olhar pra tudo, bom é olhar pro nada. Bom é olhar pra dentro, bom é olhar pra fora. Bom é o olhar de uma criança. Bom é o olhar de quem já viveu muito e te diz “essa juventude”. Boa é a intimidade – a maior de todas? - de olhar nos olhos.

  Bom é estar aqui, naquele lugar que é exatamente-aonde-eu-gostaria-de-estar-aonde-quer-que-esteja. Bom é estar vivendo. Não apenas vivo, vivendo. Bom é colocar seu coração nisso tudo. Bom é conectar sua energia vital. Bom é se esticar, ficar na ponta dos pés. Para não machucar. Para enxergar do outro lado do muro.

  Bom é estar com os dois pés no chão. Bom é rodopiar. Bom é se sentir seguro. Bom é sentir vertigem. Bom é se ver em queda livre, sem medo. Bom é entrar nessa montanha russa e soltar as mãos. Bom é dar as mãos. Para o outro, para a vida, para si mesmo.

  Bom é se dar a liberdade de enxergar o que há de bom.


  Bom, mesmo, é ter um lindo dia de sol pra se agarrar com unhas e dentes. 

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Em uma dama não se bate...

Quando eu era criança queria ser menino. O mundo das meninas era tão aborrecido, com seus vestidos desconfortáveis, sua delicadeza dissimulada e suas bonecas. Ah, as bonecas... Se algo não me interessava eram as bonecas. Minha casa de bonecas de madeira, com três andares, vendi por 30 reais para uma funcionária da escola, reinvestindo o capital em cards pokemón.
Afinal, que graça tinha ser menina? Passar o recreio sentada com sua lancheirinha rosa, conversando, para não manchar o uniforme? Queria jogar bola, correr, pular e voltar com o uniforme todo manchado.
Mas, apesar do genuíno desejo de ser menino, desde cedo aprendi as vantagens de ser menina. Eu podia atazanar todo mundo, fazer piadinhas sem graça, ser uma chata de galochas e nunca tomaria uns cascudos. Até porque, quem ia arriscar chegar em casa e ouvir da mãe "que história é essa de que você bateu em uma menina?" ou, pior, "em uma dama não se bate nem com uma flor!". De dama, está claro, nunca tive nada. Mas, que sabiam as pobres mãezinhas, tão doces e delicadas?
Com esse aval da sociedade, cheguei por diversas vezes ao ponto de dar eu uns cascudos nos meus amigos. Tive minha fase Mônica, mas ao invés do sansão usava punhos, unhas e até dentes. Quem duvidar pode consultar um velho amigo que carrega no braço uma cicatriz que é obra das minhas garras.
E assim foi, até que um dia conheci uma turma de meninos destemidos e desmedidos. Eu, a chata de galochas, logo arranjei apelidos para todos. Tinha sempre uma piadinha sem graça na ponta da língua. Em dias de maior inspiração chegava mesmo à baixeza de cutucar e sair correndo. Até que eles me avisaram: se continuar, vamos te jogar no lixo. A imagem dos filmes de colégio americano logo me deu um susto. Mas passou, graças àquela segurança que ser menina me dava - sabe se lá quantas vezes mais fiz uso dela.
Então, sabendo que em-uma-dama-não-se-bate, continuei minha ladainha de provocações. Até que, um belo dia, os três rapazinho se olharam, se levantaram e começaram a correr na minha direção. Tentei fugir enquanto gritava que, não, eles não teriam a coragem de fazer aquilo comigo. Eles de fato não tiveram: ergueram-me pelos pés, posicionaram-me sobre uma lata de lixo e me chacoalharam. Mas não me jogaram no lixo. Será que recebi essa colher de chá pelo fato de ser menina? Ou talvez jogar no lixo não fosse necessário, valia o susto. Um senhor susto.
Mas, sobrevivi e os anos foram passando. Fui vendo que ser menina não era um problema, era uma parte de mim. Claro, nunca seria como aquelas que sentavam com suas lancheiras rosas. Talvez fosse mais parecida com as que queimaram em fogueiras ou botaram fogo em seus sutiãs. O fato é que me enxerguei mulher, enfim. Recorda-se, minha delicada mãezinha, até hoje, do dia em que larguei meu boné amarelo e pedi de aniversário um kit de cosméticos. Aos poucos também aceitei os vestidos. Fui ficando mocinha e lentamente percebendo que podia fazê-lo sem perder as partes boas da vida.
Foi mais ou menos por aí que vi meu amigo, que andava com as meninas, perceber que o fazia porque gostava de meninos. E me vi, eu que perseguia os meninos, percebendo que o fazia porque gostava de meninos. Um tanto.


E hoje, enfim, não quero mais ser menino. Ainda volto do recreio com a camiseta manchada, mas aceitei a delicadeza não dissimulada de se mulher. A deliciosa dor de ser o que sou. Mas, no meio disso tudo, ainda dou de cara com uns meninos destemidos. E mesmo não sendo mais aquela chatinha, ainda me pego sendo erguida pelos calcanhares e chacoalhada por eles. Mal sabia eu que aquela chacoalhada, em cima do lixo, era mais que um susto, era um aviso: tua sina será dar de cara com rapazes que vão te erguer os pés e te deixar sem resposta. Às vezes, os coitados nem percebem que estão fazendo isso, não é por mal. Mas eu sei bem que estou de ponta cabeça. E que todas as minhas armas caíram no chão. 

Ele & Ela

[Tirado de algum canto do fundo do baú de rascunhos desse blog, escrito não sei quando.]

Ela para, ela olha, ela pensa. Olha para o homenzinho verde e pensa se deveria atravessar a rua. Pensa se devia voltar pro mercado e comprar mais uma caixa de leite. Olha o céu e pensa se deveria ter saído de guarda chuva.


Ele anda, não nota, não se importa. Só anda. Não percebe que vestiu a camiseta do avesso. Não lembra que hoje é aniversário de sua tia. Nem nota que o homenzinho verde deu lugar a outro vermelho. Nem mesmo percebe que o carro azul teve que frear bruscamente pra não atropelá-lo. Não repara que a menina de vermelho do outro lado da rua está olhando para ele.


Ela olha, ela pensa: quem esse menino acha que é para atravessar a rua sem olhar? Deve ser um belo de um irresponsável. Ela pensa e franze a testa. "Vai ficar enrugada cedo", sua mãe dizia. Ainda assim, é mais forte que ela.


Ele anda. Atravessa a canaleta e a outra pista. Tudo isso sem olhar o que acontece a sua volta. O pé no chão, a cabeça na lua.


Ela continua parada no mesmo lugar. Pensando, tentando decidir se vai ou se fica. Pensando se não devia visitar sua avó, que vive tão sozinha.


Ele termina de atravessar as 3 pistas e, sem notar o meio fio, tropeça. Tropeça e cai. Seu ombro bate no da menina de vermelho.


Ela se desequilibra. Derruba a pasta, por pouco não derruba o casaco. Abre a boca para brigar com o menino distraído que trombou nela. "Escuta aqui..."


Ele levanta o rosto, olha, abre um sorriso.


Ela emudece.


"Me desculpa, moça! Estava um pouco distraído..."


Ela, muda.


Ele levanta a pasta dela, entrega para a moça de vermelho.


Ela pega a pasta das mão dos menino distraído. Dá um sorriso amarelo, que devia demonstrar agradecimento, e sai andando.


Ele fica parado. Fica olhando a menina de vermelho se afastar, atrapalhada. Repara que ela olha pra todos os lados.


Ela anda. Tenta pensar nos compromisso dela para aquele dia. "Quarta feira é um dia longo, preciso ir buscar os...". Mas fica pensando naquele sorriso. O menino devia ser um baita irresponsável. Mas que tinha uma belo sorriso, tinha.


Ele continua olhando. Nem pensa no horário. Nem lembra que devia chegar no trabalho em cinco minutos.


Ela para, entra na farmácia. Lembra que precisava comprar um remédio pra mãe.


Ele vai até a farmácia.


Ela vê ele entrando. Fica nervosa. Não gosta de imprevistos.


Ele anda na direção dela. "Escuta, moça, não quer ir tomar um café?"


"É, é... Não sei. É, eu tenho que fazer um monte de coisa. Tenho hora no médico e..."


"...?"

"...!"

...