Quando eu era criança queria ser
menino. O mundo das meninas era tão aborrecido, com seus vestidos
desconfortáveis, sua delicadeza dissimulada e suas bonecas. Ah, as bonecas...
Se algo não me interessava eram as bonecas. Minha casa de bonecas de madeira, com
três andares, vendi por 30 reais para uma funcionária da escola, reinvestindo o
capital em cards pokemón.
Afinal, que graça tinha ser menina?
Passar o recreio sentada com sua lancheirinha rosa, conversando, para não
manchar o uniforme? Queria jogar bola, correr, pular e voltar com o uniforme
todo manchado.
Mas, apesar do genuíno desejo de ser
menino, desde cedo aprendi as vantagens de ser menina. Eu podia atazanar todo
mundo, fazer piadinhas sem graça, ser uma chata de galochas e nunca tomaria uns
cascudos. Até porque, quem ia arriscar chegar em casa e ouvir da mãe "que
história é essa de que você bateu em uma menina?" ou, pior, "em uma
dama não se bate nem com uma flor!". De dama, está claro, nunca tive nada. Mas, que sabiam as pobres mãezinhas, tão doces e delicadas?
Com esse aval da sociedade, cheguei por
diversas vezes ao ponto de dar eu uns cascudos nos meus amigos. Tive minha fase
Mônica, mas ao invés do sansão usava punhos, unhas e até dentes. Quem duvidar
pode consultar um velho amigo que carrega no braço uma cicatriz que é obra das minhas garras.
E assim foi, até que um dia conheci
uma turma de meninos destemidos e desmedidos. Eu, a chata de galochas, logo
arranjei apelidos para todos. Tinha sempre uma piadinha sem graça na ponta da
língua. Em dias de maior inspiração chegava mesmo à baixeza de cutucar e sair
correndo. Até que eles me avisaram: se continuar, vamos te jogar no lixo. A
imagem dos filmes de colégio americano logo me deu um susto. Mas passou, graças
àquela segurança que ser menina me dava - sabe se lá quantas vezes mais fiz uso
dela.
Então, sabendo que
em-uma-dama-não-se-bate, continuei minha ladainha de provocações. Até que, um
belo dia, os três rapazinho se olharam, se levantaram e começaram a correr na
minha direção. Tentei fugir enquanto gritava que, não, eles não teriam a
coragem de fazer aquilo comigo. Eles de fato não tiveram: ergueram-me pelos
pés, posicionaram-me sobre uma lata de lixo e me chacoalharam. Mas não me
jogaram no lixo. Será que recebi essa colher de chá pelo fato de ser menina? Ou
talvez jogar no lixo não fosse necessário, valia o susto. Um senhor susto.
Mas, sobrevivi e os anos foram passando. Fui vendo que ser menina não era um problema, era uma parte de mim. Claro,
nunca seria como aquelas que sentavam com suas lancheiras rosas. Talvez fosse mais parecida
com as que queimaram em fogueiras ou botaram fogo em seus sutiãs. O fato é que me
enxerguei mulher, enfim. Recorda-se, minha delicada mãezinha, até hoje, do dia
em que larguei meu boné amarelo e pedi de aniversário um kit de cosméticos. Aos
poucos também aceitei os vestidos. Fui ficando mocinha e lentamente percebendo
que podia fazê-lo sem perder as partes boas da vida.
Foi mais ou menos por aí que vi meu amigo, que
andava com as meninas, perceber que o fazia porque gostava de meninos. E me vi,
eu que perseguia os meninos, percebendo que o fazia porque gostava
de meninos. Um tanto.
E hoje, enfim, não quero mais ser
menino. Ainda volto do recreio com a camiseta manchada, mas aceitei a
delicadeza não dissimulada de se mulher. A deliciosa dor de ser o que sou. Mas, no meio disso tudo, ainda dou de
cara com uns meninos destemidos. E mesmo não sendo mais aquela chatinha, ainda
me pego sendo erguida pelos calcanhares e chacoalhada por eles. Mal sabia eu
que aquela chacoalhada, em cima do lixo, era mais que um susto, era um aviso: tua
sina será dar de cara com rapazes que vão te erguer os pés e te deixar sem
resposta. Às vezes, os coitados nem percebem que estão fazendo isso, não é por
mal. Mas eu sei bem que estou de ponta cabeça. E que todas as minhas armas
caíram no chão.
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