sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Sobre a leveza de sustentar-se.

  Estava eu no mais profundo sono sem sonhos, assim pretinho, quando veio me puxar pra superfície a suave melodia do despertador. Não quero, não vou, não posso agora. Vou ficar aqui na pretidão de não sonhar nem pensar. Ainda me doíam no corp'alma as pesadas energias do dia anterior. A incerteza de não saber o que se é, o que se faz naquele lugar cheio de gente. O peso de se manter serena em meio a tanta gente se puxando pra cima e pra baixo. Mas havia sobrevivido e agora estava bem enterradinha na minha cama. Com o peso do corpo bem afundado no macio do colchão. Com o peso da alma bem afundado no macio de não sonhar. 
  Mas, os reflexos de menina curiosa que sempre me lembram que há um mundo lá fora me fizeram abrir o olho. Só assim, de cantinho. E pelo cantinho do olho pude ver uma fresta. Só uma pequena frestinha na minha cortina que deixava passar um nesga de sol. E a tentação de suar meu coração pra fora foi maior: levantei, pus minha calça mais confortável, me batumei de protetor solar e sai para uma caminhada. 
  E foi então que - pondo o pé pra fora - senti que não ia ser tão simples assim. Podia já ter desafundado o peso do macio, mas isso não fazia com que ele deixasse de existir. A cada passo sentia o peso que estava encravado na minha carne fraca. As chaves e o celular no meu bolso pesavam como sacolas cheias de pólvora. 
  Ainda assim prossegui, disposta a botar tudo aquilo pra fora dos meus poros e ficar salgada de suor. Como tantas vezes já fiquei salgada de lágrimas. Mas a primeira gota custou a sair. Pensei em correr, mas as forças da gravidade emocional estavam contra mim. Teria que caminhar, passo por passo, até que meu corpo me desse alforria. E, como tudo na vida, a liberdade não veio de repente. A cada passo sentia que vazava de mim um pouquinho do peso da pólvora, um pouquinho daquele peso alheio. E de grão em grão a galinha esvaziou o papo. 
  Chegando, então, ao meu destino, o meu corpo falou mais alto e me joguei deitada na grama. Esvazie ou que me restava de peso no verde macio e abundante. As formigas me subiram pelos braço, os seres humanos me olharam pelos cantos de olhos. Pouco me importava. Havia transplantado a parte de mim que se importa para aquele belo gramado. Estava derretida e feliz. Assim me quedei pela quantidade de instantes que poderiam compor uma hora, quinze minutos ou uma eternidade. E quando me levantei o fiz com um prazer indigno, de quem carrega o signo da leveza costurado frouxo no peito.
  E o caminho de volta foi flutuado. Até corri, de verdade, bem rápido. Dancei e rodopiei, pra alegria dos passantes bem humorados ou debochados. Cheguei na área de alongamento com a profunda certeza de que era alguém mais leve e macia. Os sacos de pólvora haviam ficado para trás e... Qual não foi minha surpresa quando vi que de fato haviam ficado. Meu bolso estava vazio. Em algum momento havia deixado cair meu molho de chaves. 
  Pensei em entrar em pânico, pensei em ligar pro meu flatmate, pensei em ir para a casa de uma amiga, pensei em dormir na sarjeta. Até que parei de pensar e, de canto, senti. Senti e disse: vou buscar as chaves. Bem no meio daquele gramado verde e macio, aonde as deixei descansando. Aí, normalmente, se iniciaria a mais complexa conversação interna entre minha razão e minha intuição. Mas a intuição, mulher feita que é, de cara já fingiu que nem ouvia e levou a razão pelas mãos. 
  E, bom, maior ainda foi a minha surpresa quando, mais uma vez, atravessei o percurso de meia hora dançando e rindo. Como quem aproveita o lindo momento de ter acabado de perder a chave no meio de um parque. E mais lindo ainda foi o momento de encontrar meu molhinho de chave reluzindo ao sol, exatamente aonde estava eu esparramada anteriormente.
  Já atrasada para alguma coisa, me deitei de novo, abraçada ao molhinho. Senti o sol me queimar e evaporar o últimos resquícios do que não queria dentro de mim. E a volta? Bom, essa foi dançada como são as boas coisas da vida. Com dores nas pernas e queimaduras nas costas, mas com um molhinho de chaves assim, levinho e macio, rodopiando na ponta do dedo. 

2 comentários:

serfeld disse...

Engraçado termos feito semelhantes escolhas inspiradas no livro do KUNDERA. Eu decidi que nos dias anteriores a meu aniversário eu não entraria em "inferno astral" e adotaria a "insustentável leveza do ser". E passei este final de semana, desde sexta de manhã aliás, pois incorporei a leveza à sexta (ou a cesta ou a siesta!) e segui até agora (meio dia de domingo) inspirado neste mote. Para um agitado, alegre e maluco ...até que eu consegui.Só ontem eu vi que voce havia escrito este texto LINDO no teu blog. Bom domingo e boa semana. love.

Feldman disse...

♥meu velho maluco