sábado, 9 de novembro de 2013

aquelas duas

  Eram duas menininhas. Uma com longos cabelos loiros, lisos com apenas um cacho na ponta. Outra com uma vasta cabeleira castanha e olhos gigantes. As duas com as bochechas mais do que rosadas, beirando o roxo. Poderiam ser as personagens de um quadro impressionista. Duas lindas polaquinhas. Quase duas princesas, não fossem as mangas arregaçadas, o suor espalhado pelo rosto, o furo no joelho da calça de uma e a mancha de molho na camiseta da outra. Não fossem os patinetes jogados e as mãos arranhadas de asfalto. 
  Eram duas meninas pequenas, com perninhas grossas. Perninhas que naquela época ainda não as faziam pensar em academia, dieta ou plástica. Duas menininhas que de tanto arrastar o pé pelo chão, cansaram de deslizar por aí e sentaram em um banco de concreto encardido. De longe eram apenas duas menininhas cansadas, conversando. Mas quem chegasse perto notaria uma certa seriedade. Uma severidade no ar, um olhar de que está discutindo assuntos sérios. Quem, ainda assim, ousasse chegar mais perto, descobriria que naquele momento eram delineadas as mais sérias decisões para o futuro daquelas duas. Pelo menos naquele momento (mal sabia, probrezinhas).
  As duas estavam sentadas frente a frente e, com pesar, admitiam suas frustrações. Simultanea e compartilhadamente olhavam para suas respectivas vidas e percebiam: Viam como suas atuais companheiras não lhes faziam mais sentir a completude da boa amizade. Davam-se conta de como essa coisa toda de terem melhores-amigas-desde-pequenas às haviam deixado presas. Nesse ponto, as vezes desviavam o olhar, com vergonha de estarem abrindo seus pequenos coraçõezinhos tanto assim. Era bonito, mas fazia doer o buraquinho do coração. Dava medo. 
  Mas quando se deram conta, definitivamente, que aquilo tudo era compartilhado, fixaram os olhos uma na outra. Não desviaram o olhar, não mais. Se olharam com a profundidade sincera e macia que só é possível quando mesmo o peso da vida é leveza. Se olharam e tomaram a grande decisão. De comum acordo perceberam que era melhor não comunicar às suas respectivas melhores amigas que elas estavam sendo trocadas. Deus sabe o quanto não tinham nem nunca aprenderiam a ter ganas de machucar ninguém. Decidiram que manteriam as coisas como estavam, ou ao menos fingiriam que tudo estava como antes. Mas sempre que se olhassem, saberiam. Lembrariam daquele momento de suor e alma compartilhada. Lembrariam que, sentadas em uma praça, decidiram estar juntas para sempre. 
  Quando retomaram os patinetes nas mãos, sentiam-se como um copo quase transbordante. Estavam de braços dados, ainda que não estivessem. Caminharam, entrelaçadas, de volta para casa e como que sabiam de tudo. Sabiam dos sofrimentos que os grandes corações que carregavam ainda lhes infligiriam. Sabiam dos amores e desamores que ainda as fariam sentir-se um copo meio vazio. Sabiam que a vida ia lhes mostrar com todas as letras o que é mesmo angústia. Sabiam que o buraco no coração só faria crescer. E pior. Sabiam que um dia ainda iriam se encontrar em um bar, depois de anos, cada uma em um caminho tão distante e inconciliável. Talvez uma médica ou advogada, casada e com filhos e a outra perdida nos caminhos tortuosos da vida, fazendo algum mestrado em antropologia rural.
  Mas isso pouco importava. Não naquele momento. Ali, bastava a certeza tão clara daquele amor leve e sério, definitivo. Bastava sabem que elas eram duas menininhas. E que estavam juntas. 

domingo, 3 de novembro de 2013

o bonito que guardo em mim

  Ok. Admito. Já vivi paixões lancinantes e/ou agradáveis. Já bebi um tiquinho do doce e do amargo. Já tive amores com gosto de açúcar mascavo. O velho papo. Dito isto, posso assumir que já vivi a sensação macia de just-to-love-and-be-loved-in-return. Também já senti a aspereza de amar sem ser amada, quem nunca? E da mesma forma já tive admiradores não correspondidos (malucos ou nem tanto). E, convenhamos, sem falsa modéstia: todo mundo gosta de ouvir declarações, ainda que não esteja interessado no amor que vem de brinde, né?
  Por isso, guardo bem guardado as bonitezas que já ouvi. Ainda que em muitos casos me interessem apenas as palavras. Ainda que, em outros, o tempo as transfigure em feiura. Mas, de todos os homens que já me disseram coisas belas, poderia facilmente escolher  um único para enquadrar as palavras e pendurar na minha parede. Porque elas são as mais bonitas que já me dedicaram. Porque ele me concede o amor mais profundo e altruísta que alguém é capaz de dar. Porque ele o faz insistentemente, semanalmente, e pouco se importa se não lhe dou retorno. Porque ele o faz insistentemente a mais de vinte anos. 
  Sim, vocês terão de me desculpar, mas meu grande amor é um velho barrigudo, de barba branca, com um temperamento dos infernos. Ainda que as vezes eu não tenha paciência de ouvi-lo. Ainda que as vezes tenhamos vontade de nos esganar mutuamente. Mas, quando todo o resto falha, sei muito bem que segue piscando no horizonte o amor que ele me dedica. 
  Sei disso, não nego. Sei que posso maltratá-lo e até gritar com ele, que absurdo, e ele vai seguir me amando. Sei que sempre vou ser eu, palavras dele, que dou as cores para o seu filme. Sei que diante dele sempre serei a menina mais bonita do jardim de infância. 

  É claro, não posso deixar de mencionar, existem teses apontando ser isso uma simples forma de amor próprio. Afinal, segundo outro membro da prole, sou eu a versão dele "de sainha". Com a coluna em S, a cabeça grande, o temperamento dos infernos, a voz de trovão, a fome devastadora e o tom professoral. Daí também Freud explicaria minha eterna implicância com o sujeito.

  Mas, psicanálises a parte, sei bem que nunca serei presenteada com tamanha boniteza por mais ninguém. Que no meio do inferno que constantemente armamos um para o outro, respira um amor profundo. Respira com a mais tranquila certeza de que vai durar pra sempre. Vai me iluminar pra sempre. Porque não é chama, é farol. 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Sobre a leveza de sustentar-se.

  Estava eu no mais profundo sono sem sonhos, assim pretinho, quando veio me puxar pra superfície a suave melodia do despertador. Não quero, não vou, não posso agora. Vou ficar aqui na pretidão de não sonhar nem pensar. Ainda me doíam no corp'alma as pesadas energias do dia anterior. A incerteza de não saber o que se é, o que se faz naquele lugar cheio de gente. O peso de se manter serena em meio a tanta gente se puxando pra cima e pra baixo. Mas havia sobrevivido e agora estava bem enterradinha na minha cama. Com o peso do corpo bem afundado no macio do colchão. Com o peso da alma bem afundado no macio de não sonhar. 
  Mas, os reflexos de menina curiosa que sempre me lembram que há um mundo lá fora me fizeram abrir o olho. Só assim, de cantinho. E pelo cantinho do olho pude ver uma fresta. Só uma pequena frestinha na minha cortina que deixava passar um nesga de sol. E a tentação de suar meu coração pra fora foi maior: levantei, pus minha calça mais confortável, me batumei de protetor solar e sai para uma caminhada. 
  E foi então que - pondo o pé pra fora - senti que não ia ser tão simples assim. Podia já ter desafundado o peso do macio, mas isso não fazia com que ele deixasse de existir. A cada passo sentia o peso que estava encravado na minha carne fraca. As chaves e o celular no meu bolso pesavam como sacolas cheias de pólvora. 
  Ainda assim prossegui, disposta a botar tudo aquilo pra fora dos meus poros e ficar salgada de suor. Como tantas vezes já fiquei salgada de lágrimas. Mas a primeira gota custou a sair. Pensei em correr, mas as forças da gravidade emocional estavam contra mim. Teria que caminhar, passo por passo, até que meu corpo me desse alforria. E, como tudo na vida, a liberdade não veio de repente. A cada passo sentia que vazava de mim um pouquinho do peso da pólvora, um pouquinho daquele peso alheio. E de grão em grão a galinha esvaziou o papo. 
  Chegando, então, ao meu destino, o meu corpo falou mais alto e me joguei deitada na grama. Esvazie ou que me restava de peso no verde macio e abundante. As formigas me subiram pelos braço, os seres humanos me olharam pelos cantos de olhos. Pouco me importava. Havia transplantado a parte de mim que se importa para aquele belo gramado. Estava derretida e feliz. Assim me quedei pela quantidade de instantes que poderiam compor uma hora, quinze minutos ou uma eternidade. E quando me levantei o fiz com um prazer indigno, de quem carrega o signo da leveza costurado frouxo no peito.
  E o caminho de volta foi flutuado. Até corri, de verdade, bem rápido. Dancei e rodopiei, pra alegria dos passantes bem humorados ou debochados. Cheguei na área de alongamento com a profunda certeza de que era alguém mais leve e macia. Os sacos de pólvora haviam ficado para trás e... Qual não foi minha surpresa quando vi que de fato haviam ficado. Meu bolso estava vazio. Em algum momento havia deixado cair meu molho de chaves. 
  Pensei em entrar em pânico, pensei em ligar pro meu flatmate, pensei em ir para a casa de uma amiga, pensei em dormir na sarjeta. Até que parei de pensar e, de canto, senti. Senti e disse: vou buscar as chaves. Bem no meio daquele gramado verde e macio, aonde as deixei descansando. Aí, normalmente, se iniciaria a mais complexa conversação interna entre minha razão e minha intuição. Mas a intuição, mulher feita que é, de cara já fingiu que nem ouvia e levou a razão pelas mãos. 
  E, bom, maior ainda foi a minha surpresa quando, mais uma vez, atravessei o percurso de meia hora dançando e rindo. Como quem aproveita o lindo momento de ter acabado de perder a chave no meio de um parque. E mais lindo ainda foi o momento de encontrar meu molhinho de chave reluzindo ao sol, exatamente aonde estava eu esparramada anteriormente.
  Já atrasada para alguma coisa, me deitei de novo, abraçada ao molhinho. Senti o sol me queimar e evaporar o últimos resquícios do que não queria dentro de mim. E a volta? Bom, essa foi dançada como são as boas coisas da vida. Com dores nas pernas e queimaduras nas costas, mas com um molhinho de chaves assim, levinho e macio, rodopiando na ponta do dedo.