sábado, 18 de julho de 2015

profissão 'criancista'

o texto é antigo, tem pelo menos um ano de engavetamento. hoje nem mesmo sou professora. posso me dizer, ainda, criancista? mas decidi compartilhar, primeiro, porque é do meu ser e, segundo, porque me comoveu lembrar daquela pequenina que me mostrou o quanto isso era profundo. 

  Lembro-me bem do dia em que descobri que trabalhar não era (só) uma mazela. Depois de uma experiência mais do que suficiente em um escritório, havia concluido  que o trabalho, quando não te faz mal, não te faz nada. Mas um dia, entrando para dar aula uma das primeiras vezes depois de uma semana dos infernos, fui parada por uma pequena. Uma pequena que hoje já é bem maior que eu. (Isso é papo de professora velha e baixinha. No meu caso, mais baixinha do que velha.) Mas, enfim, o fato é que naquele momento a pequena me parou, olhou nos meus olhos e perguntou: Você está bem, Marina? Com muito esforço menti que "sim, estou be...", mas antes que terminasse a frase fui surpreendida por um abraço. Os dois bracinhos me envolveram com a doçura de quem diz eu-sei-que-você-não-está-bem-mas-eu-estou-aqui, a cabeça cheia de cachinhos encostou no meu colo e fui preenchida pela mais singela forma de energia que ela me doava sem medo. 
  Uma forma de energia que se tornou quase familiar com o passar dos anos. Foi virando um combustível que preenche meu coraçãozinho de professora quase que semanalmente. Também não vou mentir, dizendo que é diariamente. O professor que disser que nunca sai da sala esbravejando vai estar mentindo: lidar com gente (pequena, então) sempre causa dores de cabeça, coração e garganta. Mas o fato é que as dores, sim, existem, mas existem as delícias. Os desenhos, as genialidades, as sacadas. Os bilhetinhos, as declarações de afeto, os sorrisos. Os abraços, as beijocas e até pequeninas que te agasalham porque você está gripada. Mais que suficiente pra fazer chorar de alegria uma professora manteiga derretida como eu.
  A verdade é que essas bonitezas todas, ao longo dos anos, fizeram de mim uma chata apaixonada, que fala das "suas" crianças sempre que tem oportunidade. Tem que fale de seus filhos, tem quem fale de seus bichos de estimação, tem até quem fale de ações das bolsa- ainda que não me relacione muito com este último tipo, sei que existem. Bom, eu falo dos meus alunos e os que não se interessam por crianças vão ter que me desculpar ou se retirar. O tempo e os ventos da escola, feliz ou infelizmente, me transformaram em uma criancista em constante formação, como muitos viram economistas, cientistas ou balconistas.
  Mas ser uma criancista, como ser professora, tem suas lindezas e suas dores. As dores cotidianas e as dores de um amor maior. As cotidianas resolvemos com fonoaudiologia, acupuntura, gengibre e muita respiração profunda. Já as que vem de um amor maior são de resolução mais complexa. Aliás, ouso dizer que são insolúveis. Devo me conformar que vou carregar esse aperto no peito pro resto da vida. Isso quando o aperto no peito não vira choro convulsivo.
  O problema é que ser criancista nos faz saber melhor quem são os pequenos, saber sentar no chão e subir em árvore, saber estar no seu nível, "ficar na ponta dos pés, estender as mãos, para não machucá-las". Uma criança reconhece logo um criancista: é aquele que lhe olha nos olhos e tenta entendê-la sem subestimá-la. Mas isso de entender os pequenos, mais que um dom ou aprendizado, é um fardo. Porque entendendo-as você entende a beleza de ser criança. E isso te impossibilita de entender e aceitar qualquer situação que afaste a pequenez e grandeza daquele serzinho desta mesma beleza.
  Criancistas maduros, diante disso, não se conformariam e se colocariam a projetar caminhos de resolver estes problemas. O que seria digno e possível fazer. Mas quando ainda se é criancista em formação (sempre?) não se está completamente apto a lidar, a virar essas situações. Pode ser que ver aquela criança sofrendo tenha apenas o efeitos de te derrubar ao chão e te matar um pouco por dentro (perdoado o exagero da manteiga derretida e chorosa que sou). Pode ser que, com uma pitada a mais de pragmatismo, você já seja capaz de entender que não se pode abraçar o mundo com braços humanos. Mas fica sempre uma angústia, uma sensação de parem-o-mundo-que-eu-quero-descer, ou, na melhor das hipóteses, a compreensão de que tudo começa agora, que é sempre tempo e nunca chega-se ao fim da linha. Que o presente é brutal, que o passado o explica e que o futuro é uma luta cotidiana. Uma luta que está, sempre, apenas começando.