segunda-feira, 6 de outubro de 2014

contos efêmeros I - com um balão só, já dá pra voar?

 Clicou em finalizar compra com a relutância de quem é vivo, mas com a certeza de quem já analisou suas opções incontáveis vezes. Ia fazer esta viagem. Estava decidida. Soube, em verdade, desde o momento em que ouviu a notícia, que tomaria esta atitude. Ainda que tenha perguntado o que mesmo aquele homem havia dito e por alguns segundos não tivesse acreditado. Ainda que não soubesse exatamente o que iria fazer, sabia. Teve a certeza incerta de que faria essa viagem. Teve a certeza que seria a senhora desta jornada.
Senhora de si. Sempre havia sido a senhora de si mesma, por que agora seria diferente? Nunca havia deixado nem ele, aquele que tanto amou, interferir em suas decisões. Estava sempre disposta a estar na companhia dele e de todos aqueles que carregava no coração, mas sempre alcançou o que queria por conta própria. Egoísta? Não. Vivia com a responsabilidade de quem faz porque acredita. Em si, nos outros. Acreditava, acima de tudo, que o mundo tinha tantas possibilidades e que jamais abriria mão de abocanhá-las por estar presa a alguém, a algo, a algum lugar. Não tinha raízes. Mas isso não quer dizer que não amava. E como amava. Os seres que a cercavam, ele especialmente. Tanto que a última coisa que fez antes de se dirigir ao aeroporto foi deixar uma mensagem.

MEU CARO,
VOCÊ ME DEU TODA A FELICIDADE QUE PODERIA PEDIR. VOCÊ FOI PARA MIM TUDO QUE ALGUÉM PODIA SER. MAS SOU EU A SENHORA DO MEU PRÓPRIO CAMINHO, POR ISSO PRECISO IR. FICA COMIGO A CERTEZA DA SUA BONDADE. FICA CONTIGO TODO MEU AMOR.
A.

Feito isto, tomou seu rumo. A cada passo em direção à porta de embarque, sentia-se entornar quilos de peso pelo chão. Sabia que alguém iria recolher aquilo que deixava pra trás, e com pesar. Mas ela havia decidido que aquele fardo não carregaria. Se tornar um fardo sempre lhe pareceu o pior de todos os fardos.
Despachou a mala com todo o peso que tinha nas costas, sabendo que não iria retirá-la em seu destino. O resto de peso que ainda carregava foi ficando pelo caminho: no avião, no taxi, na agência de turismo – alguns quilos com o dinheiro com que pagou o aluguel do balão - e o último tantinho do lado de fora do cesto, depois de ouvir as últimas instruções sobre como fazer pousar um balão de ar quente. Ouviu com a atenção de quem sabe que não vai precisar daquilo, mas está de corpo e alma presente por que não carrega mais nada além de si.
Acendeu o maçarico, como lhe haviam ensinado. O ar quente subindo e junto seu corpo, com alma e tudo dentro. Sentiu-se subir, flutuar, lembrando-se vagamente de como a ideia da morte a havia atingido com um peso aterrador. Foi esmagada no exato momento em que ouviu “câncer” e se enxergou presa a uma cama de hospital. Mas não. Agora o peso ficara pra trás. A dor agora havia virado poesia, como uma cicatriz que de canto sorri. Sorriu ela também. E com a lucidez dos que sabem o que fazem, assumiu a morte com a leveza de quem voa.



Dearest,
I feel certain that I am going mad again. I feel we can't go through another of those terrible times. And I shan't recover this time. I begin to hear voices, and I can't concentrate. So I am doing what seems the best thing to do. You have given me the greatest possible happiness. You have been in every way all that anyone could be. I don't think two people could have been happier till this terrible disease came. I can't fight any longer. I know that I am spoiling your life, that without me you could work. And you will I know. You see I can't even write this properly. I can't read. What I want to say is I owe all the happiness of my life to you. You have been entirely patient with me and incredibly good. I want to say that — everybody knows it. If anybody could have saved me it would have been you. Everything has gone from me but the certainty of your goodness. I can't go on spoiling your life any longer.
I don't think two people could have been happier than we have been.
V.