Clicou em finalizar compra com a relutância de quem é vivo, mas com
a certeza de quem já analisou suas opções incontáveis vezes. Ia
fazer esta viagem. Estava decidida. Soube, em verdade, desde o
momento em que ouviu a notícia, que tomaria esta atitude. Ainda que
tenha perguntado o que mesmo aquele homem havia dito e por alguns
segundos não tivesse acreditado. Ainda que não soubesse exatamente
o que iria fazer, sabia. Teve a certeza incerta de que faria essa
viagem. Teve a certeza que seria a senhora desta jornada.
Senhora de si. Sempre havia sido a senhora de si mesma, por que agora
seria diferente? Nunca havia deixado nem ele, aquele que tanto amou,
interferir em suas decisões. Estava sempre disposta a estar na
companhia dele e de todos aqueles que carregava no coração, mas
sempre alcançou o que queria por conta própria. Egoísta? Não.
Vivia com a responsabilidade de quem faz porque acredita. Em si, nos
outros. Acreditava, acima de tudo, que o mundo tinha tantas
possibilidades e que jamais abriria mão de abocanhá-las por estar
presa a alguém, a algo, a algum lugar. Não tinha raízes. Mas isso
não quer dizer que não amava. E como amava. Os seres que a
cercavam, ele especialmente. Tanto que a última coisa que fez antes
de se dirigir ao aeroporto foi deixar uma mensagem.
MEU CARO,
VOCÊ ME DEU TODA A FELICIDADE QUE PODERIA PEDIR. VOCÊ FOI PARA MIM
TUDO QUE ALGUÉM PODIA SER. MAS SOU EU A SENHORA DO MEU PRÓPRIO
CAMINHO, POR ISSO PRECISO IR. FICA COMIGO A CERTEZA DA SUA BONDADE.
FICA CONTIGO TODO MEU AMOR.
A.
Feito isto, tomou seu rumo. A cada passo em direção à porta de
embarque, sentia-se entornar quilos de peso pelo chão. Sabia que
alguém iria recolher aquilo que deixava pra trás, e com pesar. Mas
ela havia decidido que aquele fardo não carregaria. Se tornar um
fardo sempre lhe pareceu o pior de todos os fardos.
Despachou a mala com todo o peso que tinha nas costas, sabendo que
não iria retirá-la em seu destino. O resto de peso que ainda
carregava foi ficando pelo caminho: no avião, no taxi, na agência
de turismo – alguns quilos com o dinheiro com que pagou o aluguel
do balão - e o último tantinho do lado de fora do cesto, depois de
ouvir as últimas instruções sobre como fazer pousar um balão de
ar quente. Ouviu com a atenção de quem sabe que não vai precisar
daquilo, mas está de corpo e alma presente por que não carrega mais
nada além de si.
Acendeu o maçarico, como lhe haviam ensinado. O ar quente subindo e
junto seu corpo, com alma e tudo dentro. Sentiu-se subir, flutuar,
lembrando-se vagamente de como a ideia da morte a havia atingido com
um peso aterrador. Foi esmagada no exato momento em que ouviu
“câncer” e se enxergou presa a uma cama de hospital. Mas não.
Agora o peso ficara pra trás. A dor agora havia virado poesia, como
uma cicatriz que de canto sorri. Sorriu ela também. E com a lucidez
dos que sabem o que fazem, assumiu a morte com a leveza de quem voa.
Dearest,
I
feel certain that I am going mad again. I feel we can't go through
another of those terrible times. And I shan't recover this time. I
begin to hear voices, and I can't concentrate. So I am doing what
seems the best thing to do. You have given me the greatest possible
happiness. You have been in every way all that anyone could be. I
don't think two people could have been happier till this terrible
disease came. I can't fight any longer. I know that I am spoiling
your life, that without me you could work. And you will I know. You
see I can't even write this properly. I can't read. What I want to
say is I owe all the happiness of my life to you. You have been
entirely patient with me and incredibly good. I want to say that
— everybody knows it. If anybody could have saved me it would
have been you. Everything has gone from me but the certainty of your
goodness. I can't go on spoiling your life any longer.I don't think two people could have been happier than we have been.
V.