quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O diário da verdadeira ressaca

6 de outubro
Eu acordo em uma ressaca meio nebulosa e demoro pra lembrar que fim de semana é esse. Então lembro de todas as pessoas que em algum momento me disseram que ele não tinha chance. Penso no menino que a um mês atrás me falou que ele não ia nem pro segundo turno. Eu não botei fé no menino, ainda que quisesse muito. Eu espero que você teja certo, disse. No fundo eu estava invejando a ingenuidade que trazia disfarçada de pragmatismo.

Eu sabia que ele tinha chances. Já sentia a forca do discurso dele desde muito antes, talvez porque soubesse como discursos com verdades absolutas são mobilizantes. Algo se aprende falando sobre Holocausto por dois anos todas as semanas. Mas eu ainda não quero acreditar em mim mesma – prefiro pensar que vai dar tudo certo, que não vamos ter um governo autoritário nesse país outra vez.

7 de outubro
Acho difícil acreditar que a oito anos atrás eu estava anulando meu voto. Porque hoje eu voltei a fumar por causa da eleição. Eu pedalo até a cidade vizinha, pra encontrar uns colegas e ensaiar uma apresentação que faremos durante a semana. Eles são ótimos e entendem quando digo que estou um pouco aérea. Aceitam quando fico no celular durante todo o ensaio – eles já sabem que estou apavorada com as eleições no Brasil. O que talvez não entendam é a angustia que sinto em estar distante. Eu não estou apenas ansiosa para descobrir o resultado de algo que está além do meu controle. Sinto um tanto de culpa também: eu devia estar votando, eu devia estar lutando. Eu não estou onde deveria estar.

8 de outubro
Eu acordo com uma ressaca diferente, que nenhum álcool antes me deu. A única sensação similar foi a quatro anos atrás, dois dias depois que presidenta Dilma foi reeleita.

Eu estava fazendo campanha – não queria que Aécio fosse eleito, achava que perderíamos direitos conquistados (porque mal sabia o que vinha pela frente). No dia da vitória eleitoral eu sai na rua pra comemorar e fiquei incomodada: meus amigos gritavam Chupa Tucanada para os moradores de prédios no centro que nos vaiavam. Perto do carro de som, as pessoas cantavam musiquinhas com Aecio Cheirador. Eu só pensava que tinha algo de errado com essa forma de fazer política, mas estava feliz. Tínhamos ganhado em uma vitória apertada. No dia seguinte disse para minha professora Ganhamos. Ela disse que não, que era mais complicado que isso – tem gente que simplesmente sabe. Eu sai da aula e fui pra acupuntura, onde passei 30 minutos ouvindo meu médico e suas pacientes discutindo o absurdo e a ignorância dessa gente que ainda vota no PT. Minha dor de cabeça encravava no meio da testa enquanto eu me encolhia na cadeira e queria muito fugir. No dia seguinte acordei com uma ressaca parecida com a de hoje. Talvez aquela ressaca de quatro anos atrás fosse um sinal dos tempos que estavam chegando.

9 de outubro
Sigo triste, mas menos angustiada – parece que não vai ter jeito mesmo. Deve ser também porque me sinto desacorçoada de ter que lidar com algo assim tão grande à distância. Eu sinto dor por estar distante com frequência, mas acho que isso consegue ser pior do que ver minha sobrinha aprender a andar por fotografias. Eu não sei o que estou fazendo aqui, não numa hora como essa.

14 de outubro
Depois de uma semana de desalento e cigarro, eu amorteço. Sei que não vou conseguir fazer minha parte de onde estou – nem sei qual seria minha parte afinal ou se a fazia quando estava em casa. Sigo acompanhando as notícias, cada uma delas me dói, mas nenhuma me derruba.

15 de outubro
Meu professor fala de um autor que compara a ascensão de Hitler com a ascensão de Trump, eu penso que o caso do Brasil é ainda mais terrivelmente similar. A inquietação acorda em mim. Tenho vontade de traduzir aquele texto, fazer todo mundo que conheço ler. Se vocês querem fazer isso, pelo menos saibam  o que estão fazendo. Mas ao mesmo tempo, eu sei que nada do que eu escreva vai fazer diferença. A última tentativa só serviu pra reforçar as convicções de alguns amigos e receber comentários irônicos de um ex-colega. Eu estava determinada a estabelecer dialogo e tentei começar uma conversa, perguntar sobre os filhos dele, saber se ele queria conversar sobre política. Ele nunca respondeu. Um conhecido começou uma conversa interessante comigo, uma conversa política de verdade, que serviu pra gente entender que podemos concordar mesmo discordando. Mas nesse momento, sinto que isso não basta.

25 de outubro
Eu vejo um tanto de pessoas fazendo campanhas virtuais contra o que vem. Alguns amigos que nunca foram tanto de falar em política, algumas alunas que tive e que nunca soube que se importassem com essas coisas. Eu acho bonito de ver e tento dar minha contribuiçãozinha, mais por desencargo de consciência que outra coisa. Eu sinto que nada do que eu faca nesse momento vai mudar o voto de ninguém.

26 de outubro
A onda de otimismo no meu Instagram me dá um leve ar fresco. Eu volto a pensar na eleição constantemente, mas dessa vez com uma nota de otimismo da vontade. Mas quando meus amigos aqui perguntam o que acho que vai acontecer, o pessimismo da razão fala mais alto. Ainda acho que não vai ter jeito, mesmo tendo feito nessa vida a escolha política de ser uma otimista inveterada.  

27 de outubro
A nesga de otimismo se junta com um sopro de ar fresco que recebo por aqui. Por um dia minha vida aqui é boa o suficiente pra me fazer pensar no Brasil um quase nada. E quando penso, penso com alegria e saudade da boa. Aquela calma que vem antes da tempestade.  

28 de outubro
Eu acordo ansiosa, mas parece que positiva. Não sei muito bem dizer, acho que tô de ressaca. Ressaca alcoólica, não política dessa vez. Decido ir fazer a lavanderia do mês – por algum motivo, olhar minhas roupas girando no meio de toda aquela gente falando espanhol no meu laundromat me relaxa. Troco mensagens com meus amigos no Brasil. Estou otimista, mas não iludido, ele diz. Estou preocupada, ela diz. São tempos sombrios, vejo alguém dizer. Mas quase todos os meus amigos estão postando mensagens otimistas. Eu sinto que ninguém acredita mas todos querem muito acreditar. Otimismo da vontade, é o que resta.

Eventualmente lavar a roupa e fazer faxina terminam tirando minha cabeça das eleições. Deixo a apuração aberta em um canto do meu computador, mas só lembro de olhar quando meu roomate me diz que o Pará votou no PT. É claro que o Pará votou no PT, mas e o resto. Abro a tela da apuração e vejo a tarja ELEITO. O resultado me surpreende positivamente: eu já sabia que o pior ia acontecer, mas em cima da hora quase metade do Brasil entendeu que era o pior.  

Pena que quase metade não é o suficiente. Não estou surpresa, mas frustrada. Não tenho raiva, mas tampouco tenho vontade de dialogar com aquele conhecido educado que votou pra isso acontecer. Não tenho energia para lidar com isso. Quero me fechar na concha, como quis aquele dia depois da acupuntura quando a dor de cabeça milenar da richa política me encravou na testa.

Mas antes de desconectar todos os meus gadgets, abro o Instagram. Ele está repleto de mensagens de esperança, apoio, resistência. Absolutamente inundado de Ninguém Solta a Mão de Ninguém. Sinto vontade de chorar, mas por amor e não por dor. Somos todos amados, armados ou não. Existiremos.

29 de outubro
Eu pedalo até a universidade e penso na história de Instagram que acabei de ver. Um menino que foi votar cantando Vai Dar PT na sua bicicleta e depois vestiu uma camisa do Brasil para entrevistar eleitores do outo lado. Minha primeira reação foi achar aquilo subversivo e gracioso. Mas começo a pedalar e me dá um medo. Fico pensando se ele está bem, se alguém reconheceu ele no seu disfarce, se ele foi agredido. Muito medo, e muita dor por sentir esse medo.

Desço da bicicleta e escrevo para o menino que se infiltrou do outro lado. Não faça isso sozinho, se cuide. Percebo que a parte de mim que mais vai sofrer nos próximos quatro anos é meu instinto maternal – aquele desejo de cuidar de todos e saber que estão bem o tempo todo. Minha vontade é voltar para o Brasil agora. Também porque quero protestar, resistir. Mas principalmente porque quero acompanhar meus amigos até em casa depois do protesto, ter certeza de que chegaram bem. Saber que as migues todas entraram no Uber em segurança depois da balada e saber que chegaram em casa em paz.

Não vou poder fazer isso. Não vou ser capaz de proteger quem amo, não vou estar lá pra lutar pela terra e pelo povo que amo. Me resta estar presente na ausência, se é que isso faz sentido. Estremecer a cada notícia, falsa ou verdadeira, sobre linchamentos, agressões, ataques a tudo aquilo que é desviante.

Chego na universidade com o coração na garganta. Os amigos se importam e perguntam, os colegas querem saber como estou. A única ausência é que as pessoas aqui não sabem abraçar. Numa hora dessa a doçura sem o abraço não tem muita serventia.

Quero prestar atenção na aula. Sei que o que meu professor de teoria política está falando ajuda a entender meu país agora, mas me perco. O problema é também que quando presto atenção e processo as informações, me dá vontade de chorar. Tudo fala sobre o Brasil, sobre o dia de ontem. Sobre esse dia de amanhã que dá tanto medo.


 

Um comentário:

serfeld disse...

Amada filha Marina. Você segue escrevendo bem, pesando bem e sentindo as mesmas dores que estamos sentindo, mas a distância talvez acentue e potencialize esta dor infinita. Eu ando muito estressado e querendo virar avestruz e enfiar a cara num buraco. Já pensei em virar Rip Van Winkle que adormece e desperta anos mais tarde. Há uma versão talmúdica desta alegoria que é um tal de Choni um sábio talmúdico que adormece e acorda gerações mais tarde. Infeliz pois quem ele amava, parentes e amigos não existiam mais e diz que o sentido da vida são as pessoas amadas. E isto todos nós ainda temos: nossa família entrou e saiu deste processo dificil unida. Todos temos valores semelhantes e que considero o maior legado dos nossos ancestrais: Aron, Fani, Max e Tema obrigado pelos valores e pela essência humanista que gere esta família linda. Beijos
Zeide e Papitão