quarta-feira, 25 de março de 2015

sobre a tal da páscoa judaica

ultimamente andam me perguntando da tal da páscoa judaica. ontem uma amiga, aflita, me interpelou dizendo que não pode existir 'páscoa' judaica se a gente não acredita em cristo. "calma, minha filha. páscoa judaica é só um jeito didático de falar de outra coisa". outra coisa que seria? hum, vamos ver...

uma semana em que só comemos pão ázimo (sem fermento); uma semana em que lembramos que nossos antepassados saíram do egito às pressas, fugindo da escravidão, e não puderam fermentar o pão pra essa trip no deserto; uma semana em que deveríamos, rés a lenda, de fato nos sentir como se nós tivéssemos sido escravos e então libertados. 

claro, que, como todo simbolismo religioso, essa história toda nos fala da fé em D'us, que nos libertou. mas fé não é lá meu forte, então fico com tantos outros simbolismos. 

[se tem uma coisa que gosto nessa bendita tradição que me foi legada é o recheio de simbolismos que transborda por todos os lados]

e esse tal pão ázimo, o pão da pobreza - além de ser uma bolacha estranha que dá prisão de ventre - é o mais lindo dos símbolos. e pra falar dele não consigo deixar de emprestar as palavras de um outro judeu meio subversivo: 

"Este é o pão da pobreza que comeram

os nossos antepassados na terra do Egito.
Quem tiver fome – e muitos são os que têm fome,
neste mundo em que vivemos – que venha e coma.
[...]

É o legado ético de nosso povo,

a mensagem contida neste simples alimento,
neste pão ázimo que sustentou no deserto,
e o que o vem sustentando ao longo das gerações.

É preciso ser justo e solidário,

é preciso amparar o fraco e ajudar o desvalido.


O deserto que hoje temos de atravessar

não é uma extensão de areia estéril,
calcinada pelo sol implacável.
É o deserto da desconfiança, da hostilidade,
da alienação de seres humanos.

[...]
Ama teu próximo como a ti mesmo.

Reparte com ele teu pão.
Convida-o para tua mesa.
Ajuda-o a atravessar o deserto de sua existência”.


e eu, como tantas outras vezes, chego à esse momento do ano pensando no pão ázimo. mais especificamente na prisão de ventre que o bendito pão vai me causar. mas, dessa vez, a metáfora faz mais sentido: de fato me sinto no deserto. nesse, da desconfiança e da hostilidade. nesse deserto que é existência humana. 

a aridez da humanidade vem me atingindo cada dia mais. tantos arautos da boa vontade humana tem se desmanchado diante dos meus olhos. a brincadeira (com seu fundo verdadeiro) tem sido recorrente: "ai, amiga, tô perdendo a fé na humanidade". é, tô perdendo. 

mas no meio desse deserto, em que fica difícil amar qualquer próximo ou distante, me vem outra metáfora. outro dos tão amados simbolismos que herdei com meu sobrenome e que relembro todos os anos no jantar de família. o ovo cozido. 

explico: na mesa de pessach (a tal da páscoa judaica) temos um ovo cozido, que comemos molhando na água salgada. as explicações para ele são muitas. tem uma sobre circularidade, que diz, em ritmo de CPM 22, que o mundo dá voltas. outra, que meu pai gosta de contar todo ano, fala dos ovos molhados no mar vermelho (quem quiser entender a piada pede pro patriarca feldman contar que ele adora). mas a mais fascinante de todas fala que o ovo é que nem o povo judeu: quanto mais se cozinha, mais duro fica. e o mais legal, se a gente parar pra pensar, é que ele fica duro mas segue macio. de um jeito que, se cair, quebra só a casca. não quebra porque é macio, que nem o poeta.

e como é isso que eu faço com o meu judaísmo, resolvi emprestar essa metáfora e usar do jeito que eu quero. e mandar um beijinho no ombro pros dogmático passá longe. se entrei no deserto da existência desse jeito, dá licença que vou me agarrar no ovo cozido pra sair dele. 

vou lembrar, com toda a força, que eu também sou um ovo cozido. que a vida, os seres humanos, a sociedade, vão sempre me jogar na cara que as coisas não são tão bonitas como eu espero. vão sempre rir dos meus idealismos "juvenis", sejam eles de 5 anos ou 5 horas atrás. que as coisas não funcionam nem mudam sem a gente se estrepar um pouco. mas eu sou um ovo cozido: o que vejo frustrado só me dá mais ferramentas pra fazer funcionar da próxima vez. só me dá mais pragmatismo pra enfrentar o que acho errado. só me dá mais força pra seguir sendo cozinhada pela vida e endurecendo. 

e aí lembro dos tantos ovos cozidos que a vida me introduziu. lembro desses que foram sendo fervidos comigo ou bem antes de mim, e permanecem lado a lado com um pelotão de ovos cozidos: frustrados, porém fortes. endurecendo e nunca perdendo a ternura pela humanidade. 

e os que seguem nos cozinhando vão chamar de idealismo juvenil, de verborreia ou até de comunismo - até porque nem se interessam em saber do que de fato estamos falando. pra esses eu desejo boas festas, que sigam seus jantares recheados de boa comida. eu, aqui, com meus fellow boiled eggs, vou continuar a travessia. 

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