sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Em uma dama não se bate...

Quando eu era criança queria ser menino. O mundo das meninas era tão aborrecido, com seus vestidos desconfortáveis, sua delicadeza dissimulada e suas bonecas. Ah, as bonecas... Se algo não me interessava eram as bonecas. Minha casa de bonecas de madeira, com três andares, vendi por 30 reais para uma funcionária da escola, reinvestindo o capital em cards pokemón.
Afinal, que graça tinha ser menina? Passar o recreio sentada com sua lancheirinha rosa, conversando, para não manchar o uniforme? Queria jogar bola, correr, pular e voltar com o uniforme todo manchado.
Mas, apesar do genuíno desejo de ser menino, desde cedo aprendi as vantagens de ser menina. Eu podia atazanar todo mundo, fazer piadinhas sem graça, ser uma chata de galochas e nunca tomaria uns cascudos. Até porque, quem ia arriscar chegar em casa e ouvir da mãe "que história é essa de que você bateu em uma menina?" ou, pior, "em uma dama não se bate nem com uma flor!". De dama, está claro, nunca tive nada. Mas, que sabiam as pobres mãezinhas, tão doces e delicadas?
Com esse aval da sociedade, cheguei por diversas vezes ao ponto de dar eu uns cascudos nos meus amigos. Tive minha fase Mônica, mas ao invés do sansão usava punhos, unhas e até dentes. Quem duvidar pode consultar um velho amigo que carrega no braço uma cicatriz que é obra das minhas garras.
E assim foi, até que um dia conheci uma turma de meninos destemidos e desmedidos. Eu, a chata de galochas, logo arranjei apelidos para todos. Tinha sempre uma piadinha sem graça na ponta da língua. Em dias de maior inspiração chegava mesmo à baixeza de cutucar e sair correndo. Até que eles me avisaram: se continuar, vamos te jogar no lixo. A imagem dos filmes de colégio americano logo me deu um susto. Mas passou, graças àquela segurança que ser menina me dava - sabe se lá quantas vezes mais fiz uso dela.
Então, sabendo que em-uma-dama-não-se-bate, continuei minha ladainha de provocações. Até que, um belo dia, os três rapazinho se olharam, se levantaram e começaram a correr na minha direção. Tentei fugir enquanto gritava que, não, eles não teriam a coragem de fazer aquilo comigo. Eles de fato não tiveram: ergueram-me pelos pés, posicionaram-me sobre uma lata de lixo e me chacoalharam. Mas não me jogaram no lixo. Será que recebi essa colher de chá pelo fato de ser menina? Ou talvez jogar no lixo não fosse necessário, valia o susto. Um senhor susto.
Mas, sobrevivi e os anos foram passando. Fui vendo que ser menina não era um problema, era uma parte de mim. Claro, nunca seria como aquelas que sentavam com suas lancheiras rosas. Talvez fosse mais parecida com as que queimaram em fogueiras ou botaram fogo em seus sutiãs. O fato é que me enxerguei mulher, enfim. Recorda-se, minha delicada mãezinha, até hoje, do dia em que larguei meu boné amarelo e pedi de aniversário um kit de cosméticos. Aos poucos também aceitei os vestidos. Fui ficando mocinha e lentamente percebendo que podia fazê-lo sem perder as partes boas da vida.
Foi mais ou menos por aí que vi meu amigo, que andava com as meninas, perceber que o fazia porque gostava de meninos. E me vi, eu que perseguia os meninos, percebendo que o fazia porque gostava de meninos. Um tanto.


E hoje, enfim, não quero mais ser menino. Ainda volto do recreio com a camiseta manchada, mas aceitei a delicadeza não dissimulada de se mulher. A deliciosa dor de ser o que sou. Mas, no meio disso tudo, ainda dou de cara com uns meninos destemidos. E mesmo não sendo mais aquela chatinha, ainda me pego sendo erguida pelos calcanhares e chacoalhada por eles. Mal sabia eu que aquela chacoalhada, em cima do lixo, era mais que um susto, era um aviso: tua sina será dar de cara com rapazes que vão te erguer os pés e te deixar sem resposta. Às vezes, os coitados nem percebem que estão fazendo isso, não é por mal. Mas eu sei bem que estou de ponta cabeça. E que todas as minhas armas caíram no chão. 

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