segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Era uma menina.

Engole seu coração e se ama por dentro 
Caio Fernando Abreu

  Era uma vez uma linda menina. Linda de tudo. No jeito de andar, de dançar. No jeito de sentir. No jeito leve de usar as mãos para tocar os outros, tocar o mundo. Linda no jeitinho de se vestir. Linda quando balançava o cabelo dourado. Linda quando sorria. De todos os tipos de lindeza, só lhe faltava uma: aquela lindeza tranquila e macia de quem sabe que o é. 
  E assim caminhava pelo mundo. Linda que era, não deixava de cativar as atenções de uns mocinhos. Eles a olhavam, gostavam do que viam. Se aproximavam, ela gostava do que via também, então. E assim, já sabemos, começava. E depois terminava, pois como tudo nessa vida os amores tem começo, fim e às vezes meio. E quando acabavam a menina costumava chorar, como é por bem se fazer quando se tem um coração assim, bonito. E quando chorava se sentava diante do espelho e se perguntava o que havia dado errado. Se perguntava e se respondia: deve ser isso aqui, que me sobra. Ou aquilo outro, que me falta. Deve ser a lindeza que anda me faltando.
  Em pouco tempo já estava burlando o mandamento número um da boniteza do mundo: "não cobiçaras as lindezas do próximo". Mal sabia que isso era proibido não porque era pecado, coisa de gente invejosa. Não porque tamanho olho gordo podia deixar o próximo (ou a próxima) com a boca torta. Era proibido porque, cobiçando a lindeza dos outros, você estava amassando a sua e jogando-a bem no fundo, no cantinho de si mesma. 
  E com sua lindeza, enorme que era, amassada bem no fundo do seu ser, a menina continuou a caminhar pelo mundo. E os mocinhos já não olhavam tanto, o que a fazia amassar-se um pouco mais. E quanto mais a amassava, menos os mocinhos se aproximavam. E quanto menos se aproximavam, mais ela amarrotava seu serzinho. E foi ficando, assim, um serzinho, bem pequenininha. E com um buraco doído no meio do peito, que latejava a cada vez que seu coraçãozinho amarrotado batia. 
  Um dia, se enraiveceu. "Pra que me serve esse negócio, que não cessa de bater? Pra nada, só pra doer!". É, foi assim mesmo, parafraseando o falecido mestre sem nem saber, que ela decidiu. Decidiu que não queria mais. Não queria mais doer. Não queria mais sentir. Não queria mais aquele bendito e bonito coração. Sem pestanejar enfiou as mãos bem fundo no meio do peito. Usou as unhas e os dentes com força contra si mesma, até que conseguiu arrancar o malfadado coração. 
  E então, sentou-se no meio fio e ficou olhando o ser vermelho e palpitante - que palpitava, ainda, meio manco, mas já não doía mais. E ficou olhando a criatura bonita e encarnada de sangue. E aí, ninguém sabe bem o que aconteceu. Não se sabe se foi um acesso de canibalismo, uma fome de mundo repentina, um impulso antropofágico ou aquele desespero de socorro-já-não-estou-sentindo-nada que bateu na menininha. Só sei dizer que foi definitivo: ela abriu a maior boca que tinha e engoliu de uma mordida só o bem fadado coração. Engoliu e, nem bem terminara de saboreá-lo, viu que já não estava mais encolhida e amarrotada. Estava como recém saída da lavanderia. Estava linda e inteira, como não podia deixar de ser. Afinal, engolira seu belo coraçãozinho e agora... Ah, agora se amava por dentro, e com muito gosto. 

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